“Tudo em cima?”

– Você vai sair assim?

A pergunta soou constrangimento. Esse “assim” não era um “assim” qualquer: era sugestivo e parecia dar espaço apenas a uma resposta. Com a boca cheia de água e pasta de dente, tratei de prolongar o bochecho da escovação e, antes que pudesse cuspir os restos do meu almoço recém digerido, minha sogra continuou:

– Sabe o que é, bem? É que não pega bem moça de família sair assim na rua – e disse novamente aquele “assim”, apontando para os meus seios que, sem sutiã ou qualquer outro acessório de sustentação, se distribuíam caídos pelo decote do meu vestidinho frente-única.

Ainda com um pouco de água e pasta de dente no canto dos lábios, respondi com leve temor e desconcerto:

– Vou… Na verdade não tenho outra roupa, então…

– Pera que eu vou te emprestar um sutiã meu… – e foi até o quarto procurar um modelo que pudesse dar forma aos meus seios.

Enquanto isso, fiquei no banheiro sem saber ao certo como reagir, pensando em possibilidades de me livrar da situação sem qualquer constrangimento ou “saia-justa” (ou seria o caso de “sutiã justo”?). Antes que pudesse pensar em um jeito simples de me livrar do desembaraço, minha sogra reapareceu com um sutiã branco do estilo “nadador” que, ironicamente, tratou de afogar meus seios em duas placas de bojo que se uniam por um pequeno feixe de plástico bem no centro de cada um deles.

Enquanto fazia um pequeno ajuste nas alças, que ficaram um pouco largas devido a diferença de nossos corpos, minha sogra explicava com ar de sabedoria antiga:

– Seio grande geralmente é caído. Não tem problema você não usar sutiã aqui ou na sua casa, mas na rua as pessoas podem falar. Tem muita gente maldosa aí no mundo e, além disso, você pode acabar constrangendo até mesmo o Gabriel.

Durante o trajeto de volta pra casa, ainda um pouco constrangida, me lembrei que minha sogra não tinha sido a primeira a alertar sobre os meus seios. O primeiro a fazê-lo foi meu pai, que frequentemente me perguntava se eu tinha interesse em fazer cirurgia de redução para que eles não ficassem tão caídos. Num outro dia, estava caminhando pela rua e ouvi um menino gritar: “E aí, meio quilo de teta!” – respondi com meio quilo da minha mão no colarinho dele.

A primeira coisa que fiz quando cheguei foi tirar o sutiã que havia ganhado. Mal fechei a porta de casa e já fui me despindo em direção ao quarto como quem tirava uma criatura grudenta do próprio corpo. Parei diante de um espelho de corpo inteiro colocado ao lado de uma pequena cômoda e observei meus seios por um longo instante. Notei que as veias que os rodeavam estavam mais esverdeadas e saltadas do que de costume. Os segurei com as duas mãos como uma tentativa falha de adivinhar quanto eles pesariam. Os levantei até o centro do meu peito e os juntei imaginando como eles ficariam caso fossem mais erguidos.

Tentei encontrar motivos que dessem qualquer razão aos argumentos da minha sogra e de tantos outros que já tinham me alertado, mas percebi que tudo aquilo não se tratava de sutiãs ou dos meus seios caídos. Era sobre eu e como meu corpo poderia ser objeto de fetiche e, até mesmo, causador de um possível incômodo ou constrangimento para outras pessoas.

O moralismo que há tempos diz encarar o corpo como algo sagrado parece não fazer sentido em uma sociedade que cada vez mais retira a intimidade e a individualidade do corpo, pelo contrário: o coloca disponível para todos como objeto de especulação. Meu corpo não está para mim; está para os outros.

Seja nas ruas, de maneira física; ou na internet, de maneira virtual, o corpo está sempre à mostra. O corpo é cada vez mais um bem social, ironicamente numa época onde as pessoas potencializam suas relações por meio de aparatos tecnológicos que as distanciam fisicamente.

Além disso, toda essa discussão sobre seios caídos e sutiãs também me fez lembrar da obsessão que se tem em admirar tudo que está “em cima” – e não somente em termos de padrões de beleza femininos. Em um edifício empresarial, já parou pra pensar que os cargos mais importantes ficam na parte de cima? Ou expressões como: “Ele deu a volta por cima!”; “Você viu Fulana? Tá com tudo em cima!”; “Ele está por cima da carne sêca!”; “E aí, cara, tudo em cima?” – e por aí vai nosso complexo por tudo que está em cima.

VELHA INFÂNCIA

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À caminho da casa de repouso Cidade Vicentina, localizada na Rua do Retiro, um reduto tradicional de Jundiaí, o tempo aparece em duas facetas. A primeira retrata um tempo moderno, onde carros apressados passam por lojas de grife que apresentam as tão efêmeras quanto novas tendências da moda. A segunda retrata outro tempo, onde casas antigas com muros e portões baixos servem de pano de fundo para tranquilos passos e conversas despretensiosas entre os antigos vizinhos que ali habitam.

Para adentrar o complexo vicentino, é necessário cruzar os portões de ferro descascados de tinta marrom e se apresentar em uma sala-cubículo que fica logo na entrada do asilo. O cheiro de velhice parece impregnar todos os cantos – até mesmo os que não abrigam idosos. O caderno onde se assinam os nomes dos visitantes que por ali passam possui as bordas amareladas e tão consumidas pelo tempo quanto a maioria das vidas que ali residem. Tal qual a escrivaninha de madeira corroída, onde Amilton, um senhor que veste sempre camisa de linho branca e exala suor azedo misturado com cheiro de café amargo, lê seu jornal.

O asilo é dividido em dois pavilhões. Um para os homens; outro para as mulheres. Os moradores que podem pagar, vivem em pequenas casas de dois cômodos, construídas umas ao lado das outras. Diariamente o asilo fica aberto para receber visitas de voluntários e parentes dos moradores.

A primeira coisa que se avista ao entrar no complexo é o pavilhão dos homens. Do lado de fora, alguns idosos sentados em bancos de cimento que expressam sempre estranhamento e curiosidade ao se depararem com a chegada de visitantes.

Pedrinho, um senhor que veste sempre camiseta pólo abotoada até o pescoço e um boné vermelho – o que o faz parecer uma criança banguela de cabelos brancos – é um dos mais antigos moradores do asilo e demonstra uma cordialidade e interesse pelos que chegam como se fosse um mestre de cerimônia da ala masculina.

Do lado de dentro, o pavilhão é dividido em dois cômodos: o primeiro é uma pequena sala de TV com dois sofás encapados com corino colocados lado a lado. O silêncio é invasivo e acentuado pelos chiados da TV. O segundo cômodo abriga dezenas de camas de ferro enfileiradas e acompanhadas de pequenas cômodas portando fotografias, livros e outros pequenos pertences pessoais. A singularidade de cada um fica à cargo dos times de futebol, responsáveis por pequenas rixas e brincadeiras entre os companheiros de quarto.

No meio de tantas faces enrugadas trazendo marcas de expressão bem delineadas, uma figura chama a atenção. Artur, um senhor de no máximo sessenta anos que exala uma lucidez que destoa do ambiente. Ao contrário da maioria que se divide entre os que assistem televisão e os que dormem, Artur sempre está lendo – em grande parte das vezes, a revista VEJA [batizada por ele mesmo de revista “ZOIA”].

Além de ser o mais jovem do pavilhão, Artur também é um dos poucos idosos que vivem na Cidade Vicentina por escolha própria. “Ao longo do tempo fui sentindo que aquela casa onde eu morava não me cabia mais”, revela ao contar que queria “jamais” [acentua em seu timbre de voz] ser um incômodo para sua família. “A forma que eu encontrei de me manter saudável aqui foi não acreditar na minha insanidade. A insanidade dos outros contamina a gente”.

A falta de memória é para alguns um carma, mas para outros um privilégio. Privilégio, pois parte das histórias contadas estão relacionadas a maus-tratos familiares. É o caso de D. Carmen, moradora do pavilhão feminino há mais de dez anos após sofrer agressões por parte do sobrinho – episódio que deixou seqüelas em sua estrutura óssea, fazendo com que ela se locomova apenas com o auxílio de um andador.

Carmen é das mais geniosas. Carrega em suas mandíbulas chupadas e fundas uma amargura maior do que os olhos retratam. Sua família, que de início fazia visitas dominicais, nunca mais apareceu.

Em uma das tardes, Carmen tentou passar um protetor solar de 2003 no rosto. “D. Carmen, esse a senhora não pode passar no rosto. Está vendo? Está vencido”. Com ar irônico, me respondeu espontaneamente: “Então quer dizer que se o protetor solar passou do prazo, eu não posso mais usar? E com a gente? Passou do prazo também jogamos fora?”.

O sentimento de abandono, que invade principalmente as mulheres como Carmen, é uma das piores mazelas do asilo e responsável por ocasionar depressão e distúrbios emocionais.

No Brasil, a família ainda é uma instituição que depende do suporte do Estado para garantir aos idosos zelo e uma boa qualidade de vida. Apesar de algumas alternativas tentarem preservá-los ativos em sociedade, ainda assim ocorre uma espécie de marginalização para com esses grupos que,

Contudo, esses tipos de alternativa se tornam medidas segregadoras e pouco contribuem para que o idoso se sinta confortável e compreenda o envelhecimento como um processo natural a ser aceito e não um carma a ser combatido – como apresentam as revistas de moda e beleza em suas fórmulas “milagrosas” de combate ao envelhecimento.

Além disso, a perda das individualidades e autonomia é outro fator prejudicial. Um estudo feito pelo IBGE revela que 50% dos idosos em geral dependem de ajuda para realizar hábito corriqueiros. O fato de o asilo possuir  uma rotina massificadora (ainda que necessária); dividirem o mesmo espaço; terem horário regrado para se alimentar, tomar banho e dormir, acentua ainda mais a sensação dedependência e coíbe a expressão da personalidade de cada um.

Não era o caso de “Dodia”, que estava entre os moradores com melhor situação financeira e que viviam em casas construídas umas ao lado das outras. Dodia era um senhor bem apessoado que jamais revelara os olhos escondidos por detrás de suas lentes ray-ban escuras. Acompanhado de uma bengala de ferro, fazia questão de deixar a porta de sua pequena moradia sempre aberta para tentar amenizar o calor, que fazia seu pescoço ficar tão vermelho quanto sua testa molhada de suor.

Seu nome na verdade era Derson, porém, ao sofrer de um infarto no auge de sua carreira empresarial, ficou com a fala afetada, além do lado esquerdo do corpo paralisado. “Dodia” era a única palavra que conseguia pronunciar. Apesar de sua comunicação limitada, assuntos não faltavam para compôr os diálogos, expressados através de interjeições que variavam entre olhares, gemidos, sorrisos e grunhidos.

Seu quarto possuía um contraste curioso: móveis sofisticados dentro de paredes desbotadas e um pouco encardidas, que ganhavam certo charme com os quadros que ele mesmo pintava. O frigobar do lado direito da cama revelava um luxo fora do comum: ele era um dos poucos idosos a ter sua própria casa dentro do asilo.

Em nossos últimos encontros, ganhei de presente um quadro feito por ele mesmo: um bosque parisiense dotado de charme e romantismo pintado com pinceladas leves e carregadas de cores azuladas. Poucos dias após, Derson faleceu por conta de uma infecção nos rins.

O corredor onde morava é diferente do restante do pavilhão: há mais espaço para singularidade. Na janela de cada casinha há o nome de seus moradores escrito em uma pequena lousa de giz. Em frente a uma delas, uma dama parada em pé, vestida de vermelho e com os cabelos trançados. Na pequena lousa, o nome “Onilha”. “Meu nome é a coisa mais diferente da minha vida”, revela, não por acaso, em tom bem-humorado, já que a rotina regrada do restante do asilo incomoda e muitas vezes chega a ser sufocante.

Mulheres de Atenas

“Bem, alguém caiu?”. “Caiu não, senhora”. “Ah bom… Pensei que alguém tinha caído da cadeira de rodas. Então não foi nada, fui eu quem sonhei”, indagou D. Isabel, moradora do pavilhão feminino sem saber há quantos anos e incapaz de desenvolver um raciocínio retilíneo sobre o que diz. Ainda que aparente certa fragilidade, os traços de D. Isabel são muito fortes: sobrancelhas ralas, pele fina rasgada pelas veias de coloração azulada dando destaque às entradas da testa. Perto dos lábios, essa mesma pele faz parte de outro continente – parece terra sêcacraquelada. O que sobrou da femilidade aparece nas unhas pintadas com esmaltes descascados.

Ainda nas melhores fases de sua memória, ela contou, durante os passeios que fazia a passos lentos por todo o complexo, que morava na Avenida Paulista em São Paulo quando ainda era casada. Quando o marido morreu, foi levada pelos filhos ao asilo. Antes que pudesse continuar, ela parou a caminhada e apontou para uma construção não terminada em um pequeno terreno. “É ali que vão construir mais uma caixa de guardar velhos”.

Atualmente, D. Isabel faz seus passeios sentada em uma cadeira de rodas que leva o escrito “Ortobras” em uma das laterais. Diferente de antes, agora, pouco fala. A falta de memória faz dos seus diálogos algo confuso e cada vez mais difíceis de serem compreendidos. “Eu sonhei que estavas tão linda/ Numa festa de raro esplendor/ Seu vestido era branco/ Todo branco, meu amor”, era o que declamava a todo momento no meio de devaneios que pareciam não ter pé nem cabeça. “Não sei quem eu sou, onde estou, quando estou… A vida…A vida da gente. A gente vai ficando velha e esquecendo de tudo…Sonhei que tu estavas tão linda…”.

Mesmo exprimindo um ar melancólico, possui uma espécie de aceitação deprimente como um modo de convencer a si mesma de que ali seria o melhor lugar. “Ah, eu gosto daqui… Eu tenho que gostar… Uma das coisas que eu mais sinto saudade é de comer purê de batatas bem amassadinho”.

O pavilhão das mulheres de baixa renda possui uma energia diferente do pavilhão masculino. Há mais dores, lamentos e uma necessidade urgente por parte delas em dividir suas histórias com os visitantes. Essas mulheres – que são mães, órfãs de filho, viúvas, destilam suas dores a ouvidos desconhecidos. Algumas, em um ímpeto maior de se expressar, sufocam, com suas mãos gélidas e enrugadas, os pulsos desses visitantes como garantia de que eles ouvirão seus relatos até o fim.

As paredes do pavilhão possuem cores geladas. O cheiro forte de urina – vindo do banheiro e das fraldas geriátricas não-trocadas de muitas que não possuem mais controle de seu próprio organismo – entra pelas narinas de maneira tão intensa que se pode senti-lo no céu da boca e no centro da língua.

Na sala de TV: canal religioso em exibição, muitas reclamações. “Não aguento mais assistir o mesmo canal!”, resmunga D. Aurora, uma senhora sisuda que costuma usar mais de cinco anéis em um mesmo dedo. Mãe de oito ausências, foi a primeira a se retirar do cômodo.

Por possuir uma ideologia católica – evidenciada pelos vários retratos de figuras do catolicismo pendurados nas paredes -, a Cidade Vicentina não permite a exibição de canais se não os religiosos. No entanto, a proibição de vários hábitos não impede que muitas senhoras dêem um jeito de desfrutar de prazeres e hábitos que tinham antes de morarem no asilo. É o caso de D. Rosinha, uma senhora que usa um penteado de maria-chiquinha e possui ar de traquinagem sem nada precisar dizer.

Tendo como aliada uma das enfermeiras, D. Rosinha aproveita os passeios esporádicos que dá até uma pracinha próxima ao pavilhão para bebericar alguns goles de cerveja, escondida dentro de um saco de pão.

Entretanto, os moradores não são os únicos sujeitos a restrições. Na tentativa de fotografar uma senhora cega do olho direito, a primeira censura apareceu por parte de uma enfermeira de cabelos encaracolados e tingidos de loiro-dourado. “Aqui não é permitido fotografar”, diz em tom de alerta, exalando cheiro de cigarro.

Na segunda tentativa (dessa vez de fotografar Silvana, uma senhora com Mal de Parkinson que só consegue descanso em suas mãos quando cai no sono), fui mandada à diretoria para conversar com uma das freiras. “Dentro da Cidade Vicentina é proibido fotografar ou fazer qualquer registro. Os moradores daqui estão sob a tutela dos seus familiares, sob a nossa tutela e sob a tutela do Estado”.

A Cidade Vicentina é um micro-organismo que possui estrutura semelhante ao das cidades [organizadas com regras, diferenças sócio-econômicas e fervilhantes de histórias e vidas que são peças plurais de um único mosaico]. Diferente da atmosfera que se encontra ao redor – que está sempre em passos efêmeros – a Cidade Vicentina possui um tempo próprio: quando se entra lá, fica impossível determinar a passagem do tempo. A paisagem parece sempre imutável, como em uma fotografia. A movimentação maior fica por conta da morte, uma entidade que paradoxalmente está sempre renascendo naquele lugar.

Aline

É clichê, mas o terceiro colegial costuma ser um ano marcante e também decisivo na vida de todo jovem. Ainda mais se você é estudante de uma escola particular, onde o referencial de ensino é constatado pela quantidade de alunos aprovados nos vestibulares mais difíceis do país. Não faz muito tempo que eu deixei de usar uniforme, mas algumas lembranças me escapam da cabeça. No entanto, jamais esqueço que o terceiro colegial foi, para todos os meus amigos, um período de dúvidas.

Vi muitos colegas de classe sentindo culpa por não terem decidido – às vésperas do vestibular – qual carreira escolheriam (como se fosse possível escolher esse tipo de coisa como se escolhe um prato de comida em um menu de restaurante). Eu também sentia culpa. Culpa por não sentir culpa como meus amigos. Culpa por não me deixar envolver pela pressão do vestibular. Nessa “época” (sim “época”, afinal, mesmo não fazendo nem uma década que eu deixei de usar uniforme, olho para esse período com um distanciamento muito maior do que os anos possibilitaram), a escolha da profissão não foi o maior dos problemas. Não que eu não tivesse dúvidas em relação a isso, mas sabia que uma hora ou outra essa decisão viria. E veio. De modo mais natural que parto de mulher corajosa.

Era a última aula do horário. Massiva. Matemática. O professor era um homem de meia-idade que evidenciava sua amargura com piadas carregadas de um bom humor negro. Eu tinha terminado meu primeiro namoro fazia poucos dias. Desde então, virei alvo predileto das brincadeiras desse tal professor, que insistia em fazer piada dos meus choros incontidos meio as suas equações indecifráveis.

Quando o sinal da saída tocou, saí correndo da sala de aula para que ninguém visse as evidências do melodrama no meu rosto inchado. Naquele dia,  não quis voltar de ônibus, decidi ir para casa à pé.  Minha casa era longe, mas quanto mais minha cabeça se ocupava das lembranças do meu namorico apaixonado e recém-terminado (na “época” era algo bem mais dramático do que conto agora), mais involuntários se tornavam os movimentos das minhas pernas.

Estava prestes a atravessar uma rua ainda próxima do colégio quando fui freada por um carro desnorteado. O motorista era um senhor com um bronzeado de aspecto artificial, cabelos e barba grisalha que, com urgência, disse:

– Minha filha, onde fica o Hospital Universitário?

– O Hospital Universitário? É em frente a minha casa. Bem, vira à direita e segue reto. Depois vira a próxima esquerda e o senhor vai dar de frente com o um semáforo. Depois desse semáforo, vira à direita de novo e segue reto. O senhor vai dar de frente com uma Avenida, então…

– Minha filha, eu não sou daqui… Preciso levar ela ao hospital! – disse o grisalho enquanto apontava para uma jovem mulata e grávida, chorando no banco do passageiro.

– O senhor tá querendo me dizer que essa moça tá tendo bebê agora?

-Sim!

– A bolsa já estourou?

– Já!

– Vamos fazer o seguinte: deixa eu entrar no carro que eu guio vocês até lá! – nem esperei a confirmação do senhor e, num impulso frenético, fui entrando no automóvel, que cheirava a pele negra e a cigarro. Como a mulata não tinha forças para afastar o banco para frente, sugeriu que eu me sentasse na frente, ao lado dela. Seu nome era Aline.

Fiquei observando suas feições. Fortes, mas ainda assim serenas. Ela me contou um pouco como funcionavam as contrações, dizendo que, de tão dolorosas, tornavam seu corpo todo amortecido. Apesar da dor e do choro, Aline também ria. Não só das piadas que o senhor contava para tentar distraí-la das contrações, mas por reconhecer certa comicidade naquela situação.

– Mas me diga, menina, você volta todos os dias a pé da escola? Haja pernas, não? – indagou o senhor.

– Volto sim. Eu gosto e nem acho o caminho tão cansativo… – pura balela. O que eu queria ter dito mesmo, aliás, feito, era ter me posto a chorar e começado a vomitar as dores do meu coraçãozinho partido; dizer que também estava grávida, mas era de amor e que meu coração estava sofrendo inúmeras contrações de paixão (continuo dizendo que naquela “época” era algo um pouco mais dramático do que conto agora). Contudo, contive as emoções e não dei margem pro assunto. Tínhamos chegado ao hospital. O senhor estacionou em frente a entrada. Ajudei Aline a se levantar do banco e recebi um abraço forte e barrigudo. Senti vontade de chorar e dessa vez não me contive. Desejei boa sorte.

Quando Aline chegou à recepção, acenei pela última vez e segui novamente o rumo  de casa. Fiquei pensando nela por um bom tempo e nas dores que a gravidez proporcionava em seu útero, tudo por um outro ser. Fiquei pensando que os apaixonados também sentiam fortes dores, não no útero, como as de Aline, mas que também eram por um outro ser. Nesse momento, reconheci duas verdades para mim mesma. A primeira é que, independente da profissão que eu escolhesse, gostaria de sentir a mesma emoção e privilégio que senti vivendo um pouco a história de Aline. A segunda é que o amor, assim como o de uma gestante, “só é bom se doer”.

Distração

Enquanto procurava o isqueiro perdido no meio da bolsa de pano, os lábios da moça seguravam a ponta do cigarro a movimentá-lo para cima e para baixo com a ajuda da língua. A primeira tragada pareceu descer ardida pelas entranhas da garganta, fazendo torcer as veias do pescoço. A primeira fumaça soltada fez com que seus olhos ardessem, despertando um piscar diferente e mais prolongado no olho esquerdo. Depois disso, o olhar penetrou em um ponto morto da cidade e assim ficou por alguns minutos.

Esperando as horas morrerem como urubu em cima da carniça, o porteiro de um dos prédios da Avenida 9 de Julho ficou por um bom tempo fitando o relógio digital, pregado na parede encardida e descascada de seu cubículo. O jornal, aberto na página de esportes, parecia um estímulo ao desinteresse. Ao lado, um copo de vidro esboçava marcas de um café tão amargo quanto o tédio. Olhou para trás, colocou um cd de música evangélica para tocar e a boca começou a se movimentar, cantando sem pronunciar qualquer ruído.

A primeira batalha do super-herói de apenas seis anos estava prestes a ser travada. Na sua frente, o vilão: um copo de leite com Nescau misturado a muitas natas. Os dedos finos e pequenos mergulharam no copo procurando retirar as tantas pintinhas brancas que não gostava, mas a tentativa foi falha. Quanto mais ágeis seus dedos se movimentavam, mais as natas pareciam correr de sua busca.

O chiado do rádio daquele automóvel transformava a voz do locutor em sonoridades mais roucas que a das cantoras de jazz. O volante se movimentava ao som dos mais variados ritmos, hora o das canções; hora dos barulhos da cidade. Todos os dias, torcia para o motorista entrar no carro de bom-humor para que não descontasse as angústias de toda uma vida em seu corpo duro e circular. No centro desse corpo: uma buzina de feições macias e voz estridente, que insistia em ecoar as frustrações do dono do automóvel.

O escritório parecia viver em eterno horário do “rush”. A correria, o barulho, a pressa, se davam num ritmo incessante nos prédios da Avenida Paulista. Na sala de xerox, a impressora, num gesto de rebeldia e negação àquele cotidiano inóspito, começa a rasgar e a cuspir a papelada que os homens de terno julgavam importante. Rebeldia que não dura muito tempo e é castigada severamente com tapas na lateral de seu corpo de acrílico.

Quando distraídos, somos mais humanos. A humanidade contagia os inanimados

Uruguai aposta em estatização da maconha para acabar com o tráfico e reduzir o abuso de outras drogas

        Ao caminhar pela “rambla” (a costa) uruguaia em Montevidéu, banhada pelo Rio da Prata, um turista brasileiro poderia estranhar o grande número de pessoas consumindo cannabis ao ar livre, sem receios em relação ao policiamento ou às outras pessoas. Mas não é só na rambla que esse tipo de atividade pode ser vista: em qualquer ponto da cidade, é possível se deparar com uma pessoa abaixada, moendo a erva com as mãos ou enrolando-a em papel de arroz.

Desde junho de 2012, os usuários de maconha uruguaios têm mais um motivo para comemorar: foi apresentada uma proposta para uma “legalização controlada” da droga. A partir de então, discute-se uma forma de produzir, distribuir e disponibilizar a erva ao usuário de forma a combater a violência e o narcotráfico.

Hoje, o consumo da cannabis no Uruguai é descriminalizado, ou seja, a erva pode ser usada por qualquer um e em qualquer lugar, o que deixa os usuários mais à vontade para fumar em espaços públicos. Mas nem sempre foi assim. Kike Yuyo, proprietário da Yuyo Brothers, loja especializada em artigos canábicos, se recorda do tempo em que o uso ainda não era liberado. Segundo ele, antigamente a repressão era maior. “Tínhamos que nos esconder para fumar – não porque íamos apanhar, como acontece no Brasil -, pois os policiais queriam saber quem tinha vendido a erva, onde conseguimos aquilo. O que eles queriam, na verdade, era pressionar a base para chegar ao topo da cadeia”.

Em uma escura sala de reuniões de um albergue localizado em Ciudad Vieja (A Cidade Velha) de Montevidéu, estão sentadas duas figuras de extrema importância para o debate sobre a maconha. Com ar calmo e consciente, Laura Blanco e Juan Vaz, ativistas e fundadores da Associação de Estudos Canábicos do Uruguai (AECU), já acumulam anos de luta pela legalização e regulamentação da erva. Enrolando cigarros de tabaco continuamente, os dois falam sobre sua trajetória pró-legalização. Segundo a dupla, a Associação tem três objetivos principais: culturais, sociais e educativos.

No âmbito cultural, procuram continuar a desestigmatizar o usuário. No social, dão apoio legal aos autocultivadores que sofreram ou sofrem processos, além de informar os direitos de cada um como cidadão. Por último, no campo educativo, o grupo busca informar e difundir a cultura canábica.

Segundo Vaz, o autocultivo é uma ótima saída para que o usuário possa ter acesso a um produto de melhor qualidade. No entanto, a iniciativa ainda não foi legalizada e não há previsões para que seja. “É um grande passo, pois a erva que recebemos vem do Paraguai e é de muito má qualidade. Não sabemos se são misturadas com outras substâncias e não passa por um controle sanitário como outras mercadorias”.

Por outro lado, Vaz complementa dizendo que eles estão engajados na questão das terapias medicinais e, sobretudo, em tratar da investigação, que está muito mais adiantada em outros países do que aqui. Na América Latina, fizeram a maconha ser proibida e ela nunca foi tomada como um medicamento. Nas faculdades de medicina, não se aceita nenhuma característica boa da cannabis, se omite, não se estuda e, portanto, não se receita.

Uma das coisas que omitem tem a ver com a terapia substitutiva de cannabis para inibir o consumo de drogas mais pesadas, como o crack, e tem funcionado. “São coisas difíceis de propor socialmente enquanto a cannabis for proibida. Do contrário, estaríamos discutindo essas políticas”, diz Vaz.

Sobre o recente projeto de legalização uruguaio, Blanco afirma ser a maior preocupação da AECU. De acordo com a ativista, eles estão buscando uma maneira de como regularizar a maconha, e não mais se ou não regularizar. De acordo com os ativistas, o país deu um grande passo, já que será uma oportunidade para a guerra contra o narcotráfico será vencida. “ O governo decidiu tomar essa decisão não porque incentiva o uso da droga, mas para reduzir a violência e desvincular o usuário das bocas de outras drogas, como fez a Holanda há muitos anos”, complementa.

Segundo Kike Yuyo, hoje, o usuário encontra dificuldades em conseguir adquirir o produto nas “bocas de fumo” da capital. “A situação é difícil, pois precisamos ir à lugares que não são nosso mundo. O problema é que o usuário acaba indo para estes lugares comprar maconha e, muitas vezes, se envolve em confusões que não tem nada a ver com ele”.

Uma das preocupações – e principais motivações para a legalização – do governo é o fato de que o usuário, estando em uma boca e não encontrando disponibilidade de maconha, acaba adquirindo outra droga pelas mãos do traficante, como crack e cocaína. Com o projeto de lei, teoricamente, o usuário não enfrentará a escassez do produto, não sendo, assim, incentivado a adquirir outro produto como substituto (o chamado Efeito Gôndola).

Em locais como a Plaza Seregni, a droga é descriminalizada e naturalmente consumida.

Em locais como a Plaza Seregni, a droga é descriminalizada e naturalmente consumida.

Alguns usuários, como é o caso de Diego Ferreira, discordam. “Fumo [canabis] há sete anos e nunca tive interesse por outras drogas”. Em relação  à venda de maconha por parte do governo, o jovem questiona se o fato complicará a vida do usuário, uma vez que esse terá direito a um número limitado (em torno de quarenta) de cigarros de maconha por mês.

Para a socióloga e professora universitária Mariana Pomies, o problema do narcotráfico não é uma preocupação geral da nação uruguaia, apenas de Mujica. “O presidente fala de muitas coisas de uma maneira pouco protocolar. Do ponto de vista econômico sim, é um problema, pois envolve outros países”.

De acordo com a pesquisadora, a violência em torno das drogas e as consequências do consumo de drogas mais pesadas é que ocupam a mente de parte da população, isso, pois o governo pretende ter controle sobre a droga e substituir o consumo do crack pelo da maconha nos níveis mais baixos. “Com isso se melhora as condições sanitárias dessa população e acabamos com a violência. O questionamento inicial do governo era: ‘como se combate a violência gerada pelo crack? Combatendo as drogas que são o caminho a isso’”.

Uns, como o governo, defendem a legalização por conta da violência; outros por acreditarem que essa é uma medida moderna para o país. No Uruguai, as pessoas não são mal vistas por consumirem maconha, mas os usuários de crack são associados a  marginalidade. A maconha está nas universidades, em reuniões, festas de aniversário e a polícia não invade esses lugares em busca de pessoas consumindo.

Pomies se mostra cética em relação ao governo uruguaio, o qual julga ineficiente e burocrático, uma das razões pelas quais não se deve, segundo ela, atribuir a ele mais funções do que as atuais. “Vão executá-las de forma malfeita, gerando mais corrupção do que já existe. A ideia do governo produzir e distribuir maconha me parece nefasta; não vai funcionar”.

Nicolas Nuñez, deputado eleito pelo partido socialista Frente Ampla, chega à Casa del Pueblo (Casa do Povo), a sede do partido, acompanhado de seu irmão gêmeo e mais um amigo. Por conta de sua aparência jovial, é difícil acreditar que aquele é um personagem político de peso no cenário uruguaio. Em um mini-tour pela sede do partido, Nuñez aponta para um martelo que, junto a pedaços de vidro e pedra, se encontra em exposição nas escadarias do local. “Foi com esse martelo que a polícia destruiu a porta deste mesmo edifício durante a ditadura militar, na caça aos comunistas”. Para o deputado, que já organizou comícios e marchas a favor da legalização da droga, aquelas são águas passadas. O objetivo, no entanto, ainda é o mesmo: dar maior liberdade e autonomia à população.

Começamos a ser reconhecidos como uma organização política em 2005, quando o governo de frente ampla venceu as eleições e passou a ter maior receptividade no governo”. A partir de então, o partido passou a articular uma estratégia para tratar o tema da legalização. Em razão das marchas e passeatas, o partido ganhou e uniu forças a favor do assunto até alcançarem, em 2012, o lançamento de uma lei que visa a distribuição e produção de cannabis por parte do governo. A lei, no entanto, como ressalta Nuñez, não tem como objetivo liberar todas as drogas, mas sim regular o que ainda não está regulamentado.

O deputado argumenta que é necessário encontrar uma maneira de tratar o tema que seja totalmente adaptada à realidade uruguaia, ao invés de copiar a legislação de países europeus.

No entanto, o partido encontrou dificuldades em implantá-la por conta da falta de informação. “A informação não chega às pessoas, o que torna difícil explicar e convencer a legalização para uma pessoa desinformada”.

De acordo Laura Blanco e Juan Vaz, amigos pessoais e apoiadores do partido, o governo, apesar de aceitar a legalização, foi criticado por muitos dos usuários. Para eles, isso se deve à falta de informação de quem está articulando a lei agora, além do próprio presidente. “Ele [Mujica] é um senhor com quase 80 anos, floricultor, mas que nunca esteve vinculado a essas substâncias. Para ele, nós [usuários] somos uns pobrezinhos, doentes”. 

O estudante Ignácio é membro da associação Prolegal, entidade à favor da legalização que tem como objetivo mudar a política de drogas. A associação trabalha, entre outras coisas, para tornar o autocultivo e os “clubes canábicos” legais, como alternativas ao monopólio governamental sobre a erva. “Os clubes são associações nas quais os membros, de forma rotativa, plantam maconha e, na época de colheita, a compartilham entre si. A proposta pode ser positiva para controlar o preço e o acesso à substância”.

Os argumentos da oposição, de acordo com o deputado, são baseados na lógica de “o poder é meu, faço o que quero com ele”. Para esses, a maconha é má e precisa ser proibida, pois pode fazer mal à saúde. “O único argumento que têm é de que a maconha é prejudicial à saúde. Para mim, é o mesmo que proibir o licor por seus malefícios”.

Entre os argumentos da oposição, também está o de que a legalização irá causar um aumento no número de consumidores da erva, o que Vaz discorda. Segundo o ativista,  legalizar não vai aumentar a quantidade de pessoas fumando, mas sim, com mais segurança, com melhor qualidade e consciência.

Outro ponto a favor da legalização é o de que a maconha, por ser a droga mais vendida do mundo, ao ser retirada das mãos do traficante e colocada na do governo, irá causar um prejuízo enorme ao tráfico. Além disso, o lucro (que é alto) proveniente da venda passa a ser destinado ao governo, que pode utilizá-lo em diversas áreas como reabilitação, educação e combate ao tráfico.

No entanto, legalizar a erva pode se tornar um problema diplomático. Países como os EUA e a China são grandes opositores da legalização. Se eles decidissem fechar o mercado para o Uruguai como forma de retaliação, o país pagaria um preço alto pela política proposta.

Nicolas Nuñez concorda com a posição da ativista. Para ele, precisa haver muita coragem para que o plano seja aprovado sem dificultar os convênios internacionais.

Apesar de controverso, o tema parece estar caminhando lentamente e de maneira consciente rumo à elaboração de uma das mais complexas, completas e conscientes legislações em todo o mundo. No entanto, sua eficácia, seja em termos de combate ao narcotráfico ou conscientização sobre o tema, só poderá ser comprovada a longo prazo.

Uma coisa é certa: abrir espaço para debates deste tipo faz com que o povo se envolva com a política e consiga, através de seus políticos, se sentir efetivamente representado em questões que, como a legalização, envolvem a sociedade e seus interesses particulares como um todo.

Nunca pensei que escreveria sobre a morte

Nunca pensei que escreveria sobre a morte. Quer dizer, como jornalista, é óbvio que frequentemente estaria relatando a perda de pessoas desconhecidas (de preferência de modo bem frio e sensacionalista como a mídia costuma fazer em sua faceta mais nauseante), descrevendo passo a passo dos últimos momentos de uma vida, resumidos em uma página fria de jornal que seria usada para embrulhar o peixe estragado de uma feira qualquer ou limpar algum traseiro, na falta de papel higiênico.

Ontem perdi um caro amigo. Christian. Estudou comigo no colegial e fez parte da melhor época da minha vida. Assassinato. Quando soube, a primeira reação que tive foi a revolta. Como poderia um simples bandido, desprovido de qualquer senso e amor pela vida, um Zé Ninguém tirar a vida de uma pessoa que mal começá-la? O Chris não tinha nem seus vinte anos, poxa. Depois veio a impotência. Comecei a observar as muitas reações das pessoas que o amavam, vi parte delas organizando até uma passeata contra a violência, mas a verdade é que nada disso pode trazê-lo de volta. É bobagem acreditar que algum senso de justiça preencha o vazio que um ente querido pode deixar.

Eu não sei como é a morte. Pra falar a verdade, nunca tinha pensado sobre ela. Via pessoas próximas morrerem ao meu redor, mas ninguém que fosse da minha idade. É estranho. Me senti da mesma forma quando tinha 12 anos. Eu era a única a não ter dado o primeiro beijo e ficava inquieta com o fato de minhas amigas já terem experimentado algo que eu nunca havia feito. Eu sei que, assim como o Chris, um dia eu terei meu encontro – e quem sabe até o primeiro beijo – com a morte. Mas ainda estou a pensar nela.

Acho que a morte é o início não só de uma vida que se findou, mas da vida que ficou. Porque, apesar de tudo, a morte de alguém marca o início de uma série de pensamentos, reflexões, voltas ao tempo necessárias para o amadurecimento de qualquer ser humano. A morte do Chris me fez voltar no tempo em que eu ainda usava uniforme, chorava escondida no banheiro, tinha aparelho nos dentes e era a garota mais altiva do universo. Me fez ter saudade de pessoas que não estão mais presentes, mas estão aí fora pulsando seus corações e arrancando sorrisos de outras pessoas. Mais do que nunca, estou louca para revê-las.

Ainda acredito que a vida das pessoas fala por elas mesmas. O legado é uma forma de vida e me parece ser quantificado na mesma proporção que a saudade. Eu estou com saudade do Chris. Estou com saudade dos velhos tempos, das antigas amizades. Da antiga Juliana (que ainda vive dentro de mim, altiva e escondida em algum lugar – talvez chorando em algum banheiro de escola).

“O que significa perda, se torna sinônimo de volta a si próprio”.
(Lou Salomé).

Na moral?

Novo programa de Pedro Bial foi comprometido devido a reflexões superficiais.

Antes de qualquer tipo de imprensa, os espaços públicos eram as esferas de debate. Cafés, bares, restaurantes reuniam grupos de intelectuais que trocavam ideias a partir de várias correntes de pensamento. Com o surgimento das várias mídias e a possibilidade de grande difusão da informação, o conhecimento ficou concentrado nas mãos de quem as possuía,  trazendo, dessa forma, certo comodismo aos cidadãos que antes se uniam dispostos a discutir e argumentar sobre assuntos gerais.

Poucos minutos antes de  “Na Moral” começar, estava dizendo ao meu pai que o assistiria, pois sentia falta de programas que fomentassem debates, reflexões, coisa não muito comum em emissoras privadas como a Rede Globo, em que o jornalismo perde sua função social para se tornar um mero produto industrial. Seria também uma nova chance ao apresentador Pedro Bial mostrar, de fato, a que veio. Apesar de sua seriedade ter sido comprometida devido sua participação nas edições do BBB, é inegável que o jornalista tem o dom da oratória e talvez seja um dos poucos que adote o cronismo como forma de narrativa televisiva. No entanto, tive minhas expectativas frustradas.

A primeira edição do programa contou com a presença do jornalista  Antônio Carlos Queiroz, do professor Luiz Felipe Pondé, da humorista global Maria Paula e do cantor Alexandre Pires para debater o tema “politicamente correto”, que tinha como premissa inicial levantar questões sobre modos de expressão popular que costumam gerar polêmica em seu uso diário. Afinal, é racismo chamar um negro de “crioulo” ou não? Infelizmente, questões como essa ficaram comprometidas devido a pouca argumentação dos convidados que, devido ao pouco espaço de tempo, não conseguiam concluir suas linhas de pensamento.

Uma matéria publicada hoje no Jornal do Brasil afirma que “a curta duração de exibição (pouco mais de 30 minutos) comprometerá qualquer tentativa de detalhamento do que está sendo colocado ‘na roda'”, concordo em partes. É verdade que, quanto menor o tempo de duração de uma reflexão, menor o seu aprofundamento, contudo, outros fatores tiveram influência: participação (ao meu ver, desnecessária) de convidados relatando suas histórias no palco – o que fez parecer os típicos programas da tarde, em que a polêmica em si tem mais espaço do que o próprio debate. E claro, não poderia esquecer da ilustre presença de homens fantasiados de gorilas e poposudas dançando um “hit” de Alexandre Pires no meio do auditório.

Ficou a dúvida sobre a proposta do programa, que pareceu se perder meio a necessidade das massas: o mero entretenimento. “Na Moral”, um programa que tinha tudo para ser um petisco aos neurônios, e por hora, apenas mais um petisco aos olhos.

Luis

Com 22 anos, o garoto saiu de casa. Viu-se livre da submissão da mãe e da ironia deprimente do pai. Enfim apaixonou-se por São Paulo. Virou fotógrafo. Registrou marchas pela liberdade de expressão, marchas pela legalização da maconha, marchas pelos direitos dos homossexuais. Registrou também famílias no parque Ibirapuera, mendigos dialogando com graffitis e a impaciência dos trabalhadores no metrô da Sé. Mas a coisa que mais gostava de fotografar era o corpo de Bianca. Gostava de observá-la sem que ela percebesse. Reparava no modo como suas costas nuas se contraíam quando despreguiçava pela manhã e como os poros de sua pele se arrepiavam toda vez que bocejava.

Um dia, após terem transado e fumado dois cigarros cada um, Bianca perguntou:
– Que tipo de coisa você se negaria a fotografar?
A jovem estava sempre fazendo perguntas, mas essa não fora respondida tão facilmente.
– Hum…Não sei dizer, Bia… – acendeu outro cigarro e ficou instantes em silêncio – acho que nada
– Nada? Nada mesmo?
Luis pensou mais um pouco e chegou a uma resposta.
– Tem sim uma coisa que eu nunca fotografaria
– Já sei: eu de roupas – disse Bianca despertando riso no rapaz
– Bem lembrado, mas além disso, não fotografaria alguém chorando
– E por que não?
– Sei lá, acho que o choro é a única coisa que o ser humano realmente tem de próprio
E era mesmo. Tanto que Luis não conseguiu chorar quando Bianca o deixara. Ao invés disso, pegou sua câmera e saiu às ruas com um sentimento revoltante no peito. Enquanto seus braços atropelavam algumas pessoas – que reclamavam pela agressividade do rapaz -, ele sequer hesitava.
Estava procurando um alvo, avistado rapidamente: uma mulher que estava sendo despejada de sua casa, chorando abraçada à uma televisão e procurando com medo uma chuva no céu. Ao lado dela, uma sala arrumadinha, no meio da calçada, com sofá; duas poltronas; mesas de centro, tapete, vaso e pufe. Crianças mascando chupetas, implorando paredes. Marido não tinha. Cachorro nem. O caminhão do despejo levava tudo. Luis dirigiu-se àquela cena. Apontou sua câmera para o rosto da mulher, ajustou o fotômetro e o foco. Sentiu suas mãos tremerem. A mulher, desolada, lhe lançou um olhar. Nada disse, apenas continuou a chorar e olhar de modo penetrante para a lente de Luis. Sua mão tremia ainda mais. Rodou o filme com o polegar esquerdo, colocou o indicador no obturador, relaxou os ombros, se preparou para fotografar.

Nota: texto inspirado, em partes, no livro “100 histórias colhidas na rua”, de Fernando Bonassi. Apenas um devaneio.

O último dia do ano

Ainda que alguns raios de sol lhe invadiram os olhos, não quis se levantar. Esticou os braços até a cômoda para olhar as horas, o relógio marcava 11h14. Ouviu sua mãe do lado de fora do quarto falando ao telefone sobre os preparativos do último dia do ano.

Levantou-se, deu um bom dia mal humorado à ela e foi ao banheiro urinar. A urina escorreu quente por parte da virilha, fazendo com que a menina fechasse os olhos com prazer e alívio por realizar tal ação. Lavou o rosto, olhou-se no espelho. Fitou-lhe os próprios olhos por um bom tempo. Fazia tempo que não parava para se olhar. No reflexo, nada havia mudado. Voltou a lavar o rosto, passou a água pelas mãos e as notou quentes. A mão direita passeou levemente pela esquerda, fechou os olhos tentando imaginar que esse gesto estivesse sendo feito por outra pessoa. Abriu os olhos e sentiu-se envergonhada diante de si. Sorriu para o espelho com certa amargura, não se convenceu.

Não tomou café da manhã, lavou algumas roupas e arrumou a casa. Almoçou macarrão com molho branco. Tomou mais coca-cola do que comeu. Ligou o computador e acessou as redes sociais. Visitou alguns perfis, reparou em algumas vidas. Contestou a veracidade de alguns sorrisos. Chorou diante do monitor. Contou 755 amigos, alguns “like’s” e insomáveis ausências. Cansou de ver esboços de pessoas, desligou o computador. Pensou na impotência das imagens e no amor que as pessoas possuíam por essas.

Voltou ao espelho e ficou a ajeitar uma gravata imaginária; contraiu os lábios de modo nobre; franziu as sombrancelhas; fechou e abriu os olhos. Voltou a ser quem era(dessa vez, sem nobreza nos lábios e sombrancelhas).

Do lado de fora da casa, um barulho: o labrador brincando novamente com o velho pano de chão. Esboçou um sorriso, olhou para fotografia do cachorro que estava em cima da mesa de centro, sorriu para ela também. Sentiu-se tão vulnerável quanto os perfis da internet, aqueles, amantes da imagem. Pensou melhor, deixou de sorrir para foto, voltou a observar o cachorro.

Queria começar o ano fazendo jus ao novo, mas nem o esmalte velho retirou das unhas. Tomou um banho, arrumou-se o máximo que pôde. Escolheu a roupa mais bonita; prendeu parte dos cabelos com um arranjo em forma de flor. Passou batom vermelho de tom sêco e saiu com sua mãe para jantar na casa de alguns amigos da família.

O jantar passou rápido, o vinho acelerara o tempo da noite. Começou a ouvir os fogos às 23h51, achou injusto, não queria abraços antes da meia noite.

Voltou para casa, levou  ao porteiro um pedaço de torta de limão que havia sobrado das sobremesas. Antes de dormir, fuçou a velha caixa de fotografias. Conseguiu até sentir o cheiro das flores de cerejeira estampadas por ela toda. Não chegou a ver todas, as guardou novamente e deu a primeira dormida de 2012. Não sabia se o mundo acabaria mesmo naquele ano, mas, de qualquer forma, não se importava. Estava feliz em não ter o que perder.

Marco Antônio

Por muito tempo fugia da hipótese de se encontrar sozinho aonde estava: linha do metrô; à espera do próximo; 15 horas.

Costumava estar ali sempre acompanhado. Tudo agora não passava de ruídos, fragmentos de olhares, timbres que seus sentidos ainda captavam. Até a solidão invadir sua vida e lhe fazer companhia, nunca havia reparado o quão aquele ambiente cheio de gente, odores, vozes o reportava para uma atmosfera completamente vazia dentro de si.

Antes que pudesse se lembrar de olhar para o relógio em seu pulso, sentiu a brisa trazida pela chegada do metrô. Fechou os olhos e viu flash’s, lembranças dos cabelos longos e castanhos esvoaçando perto do seu rosto, levando o cheiro de xampoo cítrico até suas narinas. Abriu os olhos e percebeu que estava sendo empurrado por um certo número de pessoas afobadas para adentrarem no vagão.

Apesar da correria ao redor, não precisou apressar os passos e entrar na disputa para conseguir um banco vazio ao lado da janela que, mesmo revelando apenas as paredes escuras do mundo subterrâneo de São Paulo, ainda levavam sua preferência. Tirou o celular do bolso e observou a própria imagem refletida através do visor do pequeno aparelho. Foi obrigado a concordar que a nova armação que comprara para seu óculos o deixara mais velho. De 40 anos, naturalmente confundidos com 50 (devido aos cabelos e barba grisalhos), passou a 60.

Após alguns instantes, ouviu a voz grave do locutor avisar os passageiros da próxima estação e o lado do desembarque. Levantou-se preparado para descer. Não o fez. Apenas colocou a cabeça para fora do vagão como se estivesse procurando por algo. Não o encontrou. Ouviu o sinal de que as portas estavam prestes a fechar e voltou a cabeça para dentro, para cutucar os restos de cola dos avisos colocados nas paredes daquele ambiente carregado de luz e sombras. Repetiu essa mesma ação em cada parada; de estação em estação com a mesma inquietude. Tudo o que tinha era algumas viradas de cabeça, rápidas percorridas com o olhar e a esperança empobrecida de encontrar o que procurava.

Desceu na última estação da linha verde. Ali permaneceu por muito tempo. Uma; duas horas, talvez. Finalmente encontrou o que desejava: a linda jovem dos cabelos de odor cítrico. Fazia tempo que não a via pelo metrô, ela estava de férias do trabalho. Era empregada doméstica, beirava os 20 anos e cursava enfermagem no período noturno. Ele, que contentáva-se apenas com a presença (ainda que desconhecida) da jovem, não sentiu-se mais só.

Gostava de reparar em cada detalhe nela: os olhos com cílios tão castanhos e grandes quanto os cabelos, a pinta debaixo da pálpebra e os seios redondos e acesos por de trás da camisa branca. A acompanhou até sua casa sem que ela percebesse. Quando a viu cruzar um portão enferrujado, pensou que amanhã ele haveria de dar o próximo passo para consegui-la. Amanhã ele a tocaria com lábios e mãos. Quer ela quisesse ou não.