Mês: janeiro 2012

O último dia do ano

Ainda que alguns raios de sol lhe invadiram os olhos, não quis se levantar. Esticou os braços até a cômoda para olhar as horas, o relógio marcava 11h14. Ouviu sua mãe do lado de fora do quarto falando ao telefone sobre os preparativos do último dia do ano.

Levantou-se, deu um bom dia mal humorado à ela e foi ao banheiro urinar. A urina escorreu quente por parte da virilha, fazendo com que a menina fechasse os olhos com prazer e alívio por realizar tal ação. Lavou o rosto, olhou-se no espelho. Fitou-lhe os próprios olhos por um bom tempo. Fazia tempo que não parava para se olhar. No reflexo, nada havia mudado. Voltou a lavar o rosto, passou a água pelas mãos e as notou quentes. A mão direita passeou levemente pela esquerda, fechou os olhos tentando imaginar que esse gesto estivesse sendo feito por outra pessoa. Abriu os olhos e sentiu-se envergonhada diante de si. Sorriu para o espelho com certa amargura, não se convenceu.

Não tomou café da manhã, lavou algumas roupas e arrumou a casa. Almoçou macarrão com molho branco. Tomou mais coca-cola do que comeu. Ligou o computador e acessou as redes sociais. Visitou alguns perfis, reparou em algumas vidas. Contestou a veracidade de alguns sorrisos. Chorou diante do monitor. Contou 755 amigos, alguns “like’s” e insomáveis ausências. Cansou de ver esboços de pessoas, desligou o computador. Pensou na impotência das imagens e no amor que as pessoas possuíam por essas.

Voltou ao espelho e ficou a ajeitar uma gravata imaginária; contraiu os lábios de modo nobre; franziu as sombrancelhas; fechou e abriu os olhos. Voltou a ser quem era(dessa vez, sem nobreza nos lábios e sombrancelhas).

Do lado de fora da casa, um barulho: o labrador brincando novamente com o velho pano de chão. Esboçou um sorriso, olhou para fotografia do cachorro que estava em cima da mesa de centro, sorriu para ela também. Sentiu-se tão vulnerável quanto os perfis da internet, aqueles, amantes da imagem. Pensou melhor, deixou de sorrir para foto, voltou a observar o cachorro.

Queria começar o ano fazendo jus ao novo, mas nem o esmalte velho retirou das unhas. Tomou um banho, arrumou-se o máximo que pôde. Escolheu a roupa mais bonita; prendeu parte dos cabelos com um arranjo em forma de flor. Passou batom vermelho de tom sêco e saiu com sua mãe para jantar na casa de alguns amigos da família.

O jantar passou rápido, o vinho acelerara o tempo da noite. Começou a ouvir os fogos às 23h51, achou injusto, não queria abraços antes da meia noite.

Voltou para casa, levou  ao porteiro um pedaço de torta de limão que havia sobrado das sobremesas. Antes de dormir, fuçou a velha caixa de fotografias. Conseguiu até sentir o cheiro das flores de cerejeira estampadas por ela toda. Não chegou a ver todas, as guardou novamente e deu a primeira dormida de 2012. Não sabia se o mundo acabaria mesmo naquele ano, mas, de qualquer forma, não se importava. Estava feliz em não ter o que perder.

Marco Antônio

Por muito tempo fugia da hipótese de se encontrar sozinho aonde estava: linha do metrô; à espera do próximo; 15 horas.

Costumava estar ali sempre acompanhado. Tudo agora não passava de ruídos, fragmentos de olhares, timbres que seus sentidos ainda captavam. Até a solidão invadir sua vida e lhe fazer companhia, nunca havia reparado o quão aquele ambiente cheio de gente, odores, vozes o reportava para uma atmosfera completamente vazia dentro de si.

Antes que pudesse se lembrar de olhar para o relógio em seu pulso, sentiu a brisa trazida pela chegada do metrô. Fechou os olhos e viu flash’s, lembranças dos cabelos longos e castanhos esvoaçando perto do seu rosto, levando o cheiro de xampoo cítrico até suas narinas. Abriu os olhos e percebeu que estava sendo empurrado por um certo número de pessoas afobadas para adentrarem no vagão.

Apesar da correria ao redor, não precisou apressar os passos e entrar na disputa para conseguir um banco vazio ao lado da janela que, mesmo revelando apenas as paredes escuras do mundo subterrâneo de São Paulo, ainda levavam sua preferência. Tirou o celular do bolso e observou a própria imagem refletida através do visor do pequeno aparelho. Foi obrigado a concordar que a nova armação que comprara para seu óculos o deixara mais velho. De 40 anos, naturalmente confundidos com 50 (devido aos cabelos e barba grisalhos), passou a 60.

Após alguns instantes, ouviu a voz grave do locutor avisar os passageiros da próxima estação e o lado do desembarque. Levantou-se preparado para descer. Não o fez. Apenas colocou a cabeça para fora do vagão como se estivesse procurando por algo. Não o encontrou. Ouviu o sinal de que as portas estavam prestes a fechar e voltou a cabeça para dentro, para cutucar os restos de cola dos avisos colocados nas paredes daquele ambiente carregado de luz e sombras. Repetiu essa mesma ação em cada parada; de estação em estação com a mesma inquietude. Tudo o que tinha era algumas viradas de cabeça, rápidas percorridas com o olhar e a esperança empobrecida de encontrar o que procurava.

Desceu na última estação da linha verde. Ali permaneceu por muito tempo. Uma; duas horas, talvez. Finalmente encontrou o que desejava: a linda jovem dos cabelos de odor cítrico. Fazia tempo que não a via pelo metrô, ela estava de férias do trabalho. Era empregada doméstica, beirava os 20 anos e cursava enfermagem no período noturno. Ele, que contentáva-se apenas com a presença (ainda que desconhecida) da jovem, não sentiu-se mais só.

Gostava de reparar em cada detalhe nela: os olhos com cílios tão castanhos e grandes quanto os cabelos, a pinta debaixo da pálpebra e os seios redondos e acesos por de trás da camisa branca. A acompanhou até sua casa sem que ela percebesse. Quando a viu cruzar um portão enferrujado, pensou que amanhã ele haveria de dar o próximo passo para consegui-la. Amanhã ele a tocaria com lábios e mãos. Quer ela quisesse ou não.

Tempos Modernos

A espera parecia nunca acabar. Mesmo sendo veterana no ramo que trabalhava, a garota de programa sentia a cada transa a angústia pelo tempo, escondida no meio de tantos gemidos, bolo de cabelo misturado com saliva e barulhos da penetração.

Cinco da manhã, seria o último cliente da noite. Homem gordo, barbado, fedendo catinga e cigarro. A garota tratou de vestir a máscara da sagacidade, contraiu os ossos e os lábios. Estava pronta para mais uma. Em quinze minutos o gordo já havia gozado. Deu graças à Deus por isso. Ganhou de gorjeta alguns trocados, além de virilhas assadas e mais rígidas. Não via a hora de sair daquele quarto, ir para casa tomar um banho e dormir.

Enquanto isso, Marta, uma mulher de 40 anos e de classe média, encontrava-se em seu quarto na mesma angústia, à espera de Marcos, que estava de “plantão” naquela madrugada. Tomou alguns remédios para dormir, mas não conseguiu. A cada estalo vindo de outros cantos da casa, Marta se levantava da cama para ver se o marido havia chegado. Finalmente, ela adormeceu.

Após vestir-se, Helena partiu em direção a sua casa. Com passos largos, caminhou pelas ruas contemplando a beleza dos bares noturnos pela manhã. Viu um homem saindo para fora de um deles, estava com a camisa social para fora da calça. A garota de programa colocou a mão em forma de concha sobre a testa para proteger seu rosto do sol e observar melhor aquela cena. Viu também uma mulher de cabelos encaracolados entrar pelo mesmo bar com um balde de água com detergente e um pano pendurado nos ombros. Sua observação fora interrompida por uma senhora.

– Minha filha, já são sete horas?
Helena demorou a responder.
– Não sei dizer, senhora – e partiu em direção a um mercado do outro lado da rua.

Marta, apesar de ter demorado a pegar no sono, não demorou a levantar. Não tomou café da manhã, não passou maquiagem, apenas vestiu suas roupas, colocou um óculos de sol para lhe cobrir a olheiras e foi até o mercado fazer as compras da semana.

As primeiras coisas que colocou no carrinho foram legumes e verduras. Depois, dirigiu-se até o corredor de cosméticos, onde notou Helena olhando para o rótulo de alguns xampus. A garota, percebendo que estava sendo observada, disse:
– Sinto decepcionar a senhora, mas ainda não estou à venda

Marta nada respondeu e afastou-se com raiva e rapidamente de Helena, que disse em seguida para si mesma:
– Só à empréstimo

Ao final de sua pequena compra, a garota caminhou até uma banca de jornal. Prometeu a si mesma que não compraria mais nem um maço de cigarros, mas enganou e convenceu-se que o dia estava propício para algumas tragadas.

Enquanto esperava pelo troco, analisou alguns títulos da primeira página de um jornal e observou outra cena: um rapaz de chapéu fazendo meninas de sete anos rirem com suas mágicas. Helena sorriu apenas com o canto dos lábios, quando ouviu o estalo de um beijo. Helena olhou para três rapazes que o enviaram e eles começaram a rir entre si. Desfez o sorriso e continuou a caminhar até sua casa.

Chegou na portaria do seu condomínio, subiu pelo elevador com a cabeça apoiada em uma das paredes. Estava cansada. Mal avistara sua porta e já imaginava-se dentro do apartamento, ligando o chuveiro para que a água esquentasse enquanto se despia.

Já na banheira, decidiu não molhar os cabelos. Apesar de eles estarem um pouco oleosos, apenas os prendeu para trás, deixando que parte da franja incomodasse o piscar do olho esquerdo. Olhou para suas mãos ficando enrugadas, as passeou pelas duas coxas, indo de encontro com a vagina (que também estava um pouco enrugada). Tentou dar o mínimo de prazer que ainda restava para si, não conseguiu. Sentiu-se frustrada, desistiu da masturbação, desistiu do banho.

Saiu da banheira, nem enxugou-se. Molhou o chão do trajeto até um quarto com poucos móveis: um armário explodindo de roupas, uma mesa de cabeceira, uma cama e um quadro do Chaplin em “Tempos Modernos” pendurado ao fundo. Jogou-se no travesseiro, dormiu até o anoitecer.

Às sete da noite, Marta já havia praticamente terminado o jantar. Enquanto o feijão terminava de ser cozido, acendeu um cigarro e ficou a observar a vista de São Paulo pela janela da cozinha. Ouviu um barulho de porta abrindo e fechando vindo da sala. Marcos parou diante da porta da cozinha.
– Pensei que hoje você também estaria de plantão – ironizou Marta de costas para Marcos.
– E eu pensei que você estaria feliz em me ver para o jantar

Marta não respondeu. Marcos caminhou até ela tirando um pacote de presente de uma sacola que carregava.
– Toma, abra o pacote. Sua mãe me disse que você estava louca por um desses

A mulher não olhou para o marido e muito menos para o pacote. Soltou a última tragada do cigarro dizendo:
– Sinto desapontar você, Marcos, mas eu não estou à venda

Marcos saiu da cozinha levando o pacote consigo. Marta disse em seguida para si mesma:
– Nem à empréstimo

26 de agosto de 2011

Duas horas antes de completar 19 anos, deitou a cabeça no travesseiro, pensou e chorou. Geralmente seus raciocínios eram sempre acompanhados de lágrimas – não de alegria, não de tristeza. Chegou à conclusão que seus 18 anos foram bem vividos. Pensou nas últimas escolhas que fez em sua vida, roeu as unhas e pôde senti-las penicando sua pele no colchão durante a noite. Dormiu de sono.

Acordou no dia seguinte com o despertador programado para as oito da manhã, tentou fazê-lo parar de gritar, mas a tentativa não teve sucesso. Finalmente, levantou-se e desligou o pequeno aparelho eletrônico. Olhou-se, como de costume, para o espelho. Notou que o olho direito estava borrado de rímel do dia anterior, não fez esforço para limpá-lo. Coçou a perna e sentiu um bicho lhe morder a carne. Não era bicho. Era um pedaço de unha da noite passada.

Abriu a porta do quarto, mal colocou os pés para fora dele e pôde ouvir sua mãe dizendo: “Minha vida!”, como quem estava esperando a aniversariante se levantar para lhe dar um beijo e um abraço pelos anos de vida. O beijo e o abraço foram dados e com eles veio também o choro. Não de alegria, não de tristeza. Se despediu, entrou no chuveiro, lotou as mãos de xampoo e lavou os cabelos. Esfregou a raíz e as pontas. Repetiu esse mesmo processo duas vezes.

Saiu do banho e o notou que o rímel do dia anterior estava mais borrado do que quando acordara. Esfregou os olhos com a toalha, observou-se no espelho, sorriu para si mesma com os olhos murchos e voltou para o quarto. Vestiu uma roupa de ficar em casa, recebeu a visita do pai. Um abraço, um beijo e belas palavras.

Já estava na hora de ir pegar o ônibus que a levaria para universidade. Como sempre, estava atrasada. Não importa o quão cedo acordasse, parecia que o atraso lhe despertava certo fascínio. Recebeu os devidos cumprimentos dos colegas de trajeto. Não conseguiu dormir a viagem inteira.

Na universidade, a mesma coisa.

– Parabéns! Felicidades! Espero que você continue sendo essa menina maravilhosa.

– Parabéns! Espero que você continue sendo assim, tão radiante.

Na verdade, ela não esperava nada. Aliás, esperava. Esperava não ser sempre a mesma.

Na volta da universidade, voltou calada. Ficou olhando a paisagem de São Paulo, ouvindo música alta nos ouvidos. Nem os fones impediram que seus companheiros de viagem a ouvissem.

Chegou em casa, mal trancou a porta e já foi se despindo novamente. Estava atrasada. Precisava passar o vestido branco, tirar o esmalte velho das unhas, tomar outro banho, arrumar os cabelos e decidir a cor dos lábios. Rosa ou vermelho?

– Rosa é mais menininha, devia usar vermelho – lembrou-se do que sua amiga havia lhe dito quando perguntada sobre essas duas cores. Escolheu vermelho e também o sapato mais preto e mais alto. Foi encontrar os amigos em um barzinho, como combinado. Chegou depois de dois convidados. Não sentiu-se envergonhada. Recebeu também tapinhas nas costas. Pediu uma cerveja.

Os convidados foram chegando e o frenesi aumentando. Estava elétrica. Estava feliz. Estava cheia de juventude, não cabia dentro de si. Telefonemas preencheram a ausência de algumas pessoas. Estava ansiosa para rever uma amiga, em especial. Pâmela Bardella. Estudaram juntas no colegial e fazia meses que não a via. Ela chegou, se abraçaram, o choro rolou. Não de alegria, não de tristeza. O avô dela havia falecido fazia quatro dias. Pâmela contou o quanto a cerimônia de enterro havia sido bonita, com muitas coroas de flores e um grupo musical sertanejo que o avô mais gostava.

As horas passaram. Uns chegavam, outros iam. Pessoas desconhecidas também apareceram. Alguns foram embora cedo, outros restaram até o último minuto. Quase foram expulsos do bar, que estava por fechar. Não queria que a noite acabasse.

Foi embora de carro com uns amigos. Ouviu música alta e deu risada. Cantou Beastie Boys o mais alto que pôde, curtiu a liberdade que a música proporcionava. Pararam para comer um lanche. Mais risadas. Ela não estava bêbada, estava feliz. Bebera pouco, apesar de ter cantado músicas antigas em voz alta durante a noite toda, o que fizera os outros pensarem que estivesse embriagada.

Voltou para casa, não sentiu-se saciada e não esperava que estivesse. Sempre queria mais. Deitou a cabeça no travesseiro, olhou para o teto, teve flash’s da noite que vivera. Pôde sentir ainda algumas das unhas roídas em seu colchão, as tirou de uma vez por todas. Adormeceu. Não de cansaço, não de alegria, não de tristeza. Mas pela verdade das coisas.

Vermelho Gabriela

Era assim todos os dias, impreterivelmente: acorda, tira a pilha do relógio, volta a folha do calendário, fecha a cortina, baseado bem bolado. Às vezes lia um livro, o folheava da mesma forma que o calendário. Palavras, frases. Algumas lhe reverberavam na cabeça, assim como o baseado bem bolado.

Acendeu o último cigarro do maço, encheu um copo d’água. Deu alguns goles, soltou fumaça e lembrou-se de quando estava dentro de uma garota, penetrado profundamente. Sentiu tesão e saudade. Era uma paixão antiga: Gabriela, belo par de seios. Fora ela que o transportara a tal vida medíocre. Até conhecê-la, desconhecia o gosto do tabaco; o gosto da erva e do orvalho. Da massa e das maçãs.

Apagou o cigarro, fez bochecho antes de engolir o último gole d’água, sentiu vontade de comer maçã. Esquecera-se do gosto momentaneamente, depois lembrou-se. Mas, ao invés da fruta, o que lhe invadiu a boca foi um pão francês amanhecido, duro.  Ocorreu-lhe a mente outra lembrança, era a voz de Gabriela.

– Somos mesmo amantes ou inimigos, não? – era o que ela costumava dizer. O dizia inspirada no que ouvia. Na música popular brasileira. E ele, nada dizia, inspirado na musica clássica, Bach. Ela não conhecia, talvez por isso não pudesse sentir que ele também falava, não como música popular brasileira, mas como violino. Com poesia de gestos.

Não se lembrava a cor do cabelo de Gabriela. Um azul desmaiado? Não, esses eram seus olhos. Seria ruivo? Não, vermelhos eram seus modos. Preto? Loiro? Castanho? Não.

Gabriela era sem meios termos, era extremos. Incrivelmente, não estava todos os dias bonita. Era linda aos olhos do apaixonado, exótica, aos olhos dos simpatizantes e feia aos olhos do mundo. Seu amor era transitório, bêbado, desequilibrado. E ele era o equilibrista.

Após afastar de si tais memórias, morder outro pedaço do pão francês e logo em seguida jogá-lo ao lixo, partiu para fora daquele quarto. Estava quase fechando a porta, quando voltou para dentro e pegou sua jaqueta jeans furada.  Sua mãe sempre lhe dizia que era bom levá-la consigo, caso fizesse frio. Tinha poucas lembranças maternas, mas as que tinham eram muito fortes. Eram também amantes ou inimigos.

Era o sexto dia da semana, o dia que o encaminhou para fora. As ruas estavam entre pálidas e sêcas, assim como seus transeuntes. O céu era de verão e as pessoas pareciam sufocadas. Ele contemplava a tudo indiferente, sua jaqueta o protegia de tudo. Meteu o dedo por um dos furos e quase pôde ouvir sua mãe pedindo para costurá-los. Quando foi que de amante passaram a inimigos? Talvez no dia em que ela os costurou. A angústia lhe invadiu o peito mais uma vez. Fúria. Ela não tinha o direito, não poderia tê-los costurado. Refurou a jaqueta inúmeras vezes tentando encontrar o ponto certo, harmônico. Impossível. Fora Gabriela que descobrira o ponto exato. A questão é que ele ia se esvaindo, vazando – diferente do seu amor, que era a única coisa que permanecia. Mas dessa vez ele se certificaria para que ninguém o costurasse.

Parou, encostou em um poste de luz e espirrou, algumas lágrimas desceram dos seus olhos. Eram salgadas e quentes. Fazia tempo que não chorava, estava sêco demais para tal privilégio. Gabriela era sêca, aliás. Fora ela quem o secara.

Parou no primeiro orelhão que avistou na rua, ainda era memorável o número de Gabi. Comprou um cartão telefônico de um japonês antipático, se deparou frente a alguns números. Sentia medo, sua mão direita tremia mais que sua perna em noites frias. Deixou de hesitar, discou. Gabriela atendeu depois de quatro toques.

-Alô? – ele reconheceu a voz. Ainda madura, segura. Frustrante para o rapaz, que não queria ficar mais intimidado. Ele queria conhecer o novo rosto de Gabi, sabia que havia mudado.

-Gabriela…?  – após isso, houve uma pausa torturante na voz da jovem. Ela sabia quem era e mesmo assim não se importava. Gabriela nada disse, saiu da linha sem ouvir, nem pronunciar uma frase sequer. Mesmo assim, ele ficou no orelhão a conversar consigo mesmo. Tudo que pensara estava sendo pronunciado pelos seus lábios em forma de sussurros, chiados.

Voltou para casa, quis recomeçar o sexto dia da semana. Dormiu por um longo tempo: acordou, colocou a pilha no relógio, arrancou a folha do calendário, abriu a cortina, baseado bem bolado.

Discurso indireto

Acordo, mas não abro os olhos. Gosto de abri-los apenas quando meu corpo está tomado de toda consciência e meus pés formigantes. Consigo até sentir o cheiro da leve penumbra que entra pelas frestas da minha cortina mal fechada, é o suficiente para iluminar minha coleção de fotografias.

Minhas panturrilhas estão arrepiadas, algumas músicas me remetem à mesma sensação. Passo as mãos pelo meu próprio corpo, gosto de senti-lo sem vê-lo. Posso imaginar que elas, podem ser uma brisa embalando-me as pernas e cabelos, em qualquer lugar desse mundo. Podem ser como as mãos do amante ainda não conhecido, por debaixo do meu lençol recém-lavado. Podem ser uma simples demonstração de afeto que eu posso e preciso me dar.

Levanto, passo perto do espelho e me olho. Fico forçando meus olhos a enxergar a coisa certa. Finjo que ignoro minhas sardas, procuro mais mechas claras do que meus cabelos costumam mostrar. O piso gelado desperta os poros das minhas pernas, no entanto, não procuro meias para calçar. Procuro me manter aquecida, mas não o suficiente, gosto dessa sensação.

Sirvo uma xícara de café para mim e um pote de água para o companheiro Boris, o labrador. Paro e começo a realizar novamente as mesmas ações rotineiras, só que dessa vez em frente ao espelho, prestando maior atenção de como minhas mãos se comportam em tais circunstâncias. Pego a xícara e invento novos modos de segurá-la, mas todos (os modos) bebem do mesmo gosto: café não-amargo e doce.

Procuro uma roupa a vestir, algo que combine com meu cheiro doce (e não-amargo). Não encontro, desisto de sair. Seria imponente dizer que acendi um cigarro e o fumei como nunca havia feito antes, combinaria com meu personagem. Mas não, eu não fumo. A melhor coisa que pude fazer foi ligar o som em um volume desconhecido e tragar meu próprio ócio. Ao contrário do que pensam, ele não provém de angústia alguma, é apenas a necessidade do não-raciocínio. É válida em alguns momentos.

Tudo bem, não nasci para isso. Pego a primeira roupa que vejo, calço um tênis velho e encardido, vou correr. São tantas as pessoas na rua, gostaria de desacelerar meu ritmo e prestar atenção em cada uma delas. Assim, correndo, as pessoas me são como linhas. Apenas alguns vultos de vida que meus olhos captam. Pergunto-me quantas linhas são necessárias para formar o emaranhado humano.

A passagem das pessoas é tão imperceptível quanto a passagem dos ponteiros no meu relógio. Dou “bom dia” para tantas, umas respondem com a fala, abusando de toda a apatia. Outras respondem em um conjunto irreverente de cabeça e olhar. Algumas não respondem. Toda essa variedade particular de saudações me fez lembrar aqueles tantos modos os quais segurei minha xícara de café nessa manhã.

Volto para casa, não sinto vontade de almoçar. Sinto vontade de escrever e assim o faço. Estou aqui e agora. Minha cabeça, como sempre, borbulhante de ideias dos mais variados gêneros, consegue esboçar algumas linhas de pensamentos supérfluos, efeitos do ócio. Ele faz de meu corpo instrumento para criatividade inútil.

Sento-me na beira da cama e observo o nada. Tento imaginar se o “nada” estaria perdido por entre as penumbras e a poeira que sobrevoa pelo meu quarto. O que me faria acreditar que o “nada” existe e que até ele pode despertar numa menina ociosa como eu, o alívio de que nada neste mundo possui carga zero.

 

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