Aline

É clichê, mas o terceiro colegial costuma ser um ano marcante e também decisivo na vida de todo jovem. Ainda mais se você é estudante de uma escola particular, onde o referencial de ensino é constatado pela quantidade de alunos aprovados nos vestibulares mais difíceis do país. Não faz muito tempo que eu deixei de usar uniforme, mas algumas lembranças me escapam da cabeça. No entanto, jamais esqueço que o terceiro colegial foi, para todos os meus amigos, um período de dúvidas.

Vi muitos colegas de classe sentindo culpa por não terem decidido – às vésperas do vestibular – qual carreira escolheriam (como se fosse possível escolher esse tipo de coisa como se escolhe um prato de comida em um menu de restaurante). Eu também sentia culpa. Culpa por não sentir culpa como meus amigos. Culpa por não me deixar envolver pela pressão do vestibular. Nessa “época” (sim “época”, afinal, mesmo não fazendo nem uma década que eu deixei de usar uniforme, olho para esse período com um distanciamento muito maior do que os anos possibilitaram), a escolha da profissão não foi o maior dos problemas. Não que eu não tivesse dúvidas em relação a isso, mas sabia que uma hora ou outra essa decisão viria. E veio. De modo mais natural que parto de mulher corajosa.

Era a última aula do horário. Massiva. Matemática. O professor era um homem de meia-idade que evidenciava sua amargura com piadas carregadas de um bom humor negro. Eu tinha terminado meu primeiro namoro fazia poucos dias. Desde então, virei alvo predileto das brincadeiras desse tal professor, que insistia em fazer piada dos meus choros incontidos meio as suas equações indecifráveis.

Quando o sinal da saída tocou, saí correndo da sala de aula para que ninguém visse as evidências do melodrama no meu rosto inchado. Naquele dia,  não quis voltar de ônibus, decidi ir para casa à pé.  Minha casa era longe, mas quanto mais minha cabeça se ocupava das lembranças do meu namorico apaixonado e recém-terminado (na “época” era algo bem mais dramático do que conto agora), mais involuntários se tornavam os movimentos das minhas pernas.

Estava prestes a atravessar uma rua ainda próxima do colégio quando fui freada por um carro desnorteado. O motorista era um senhor com um bronzeado de aspecto artificial, cabelos e barba grisalha que, com urgência, disse:

– Minha filha, onde fica o Hospital Universitário?

– O Hospital Universitário? É em frente a minha casa. Bem, vira à direita e segue reto. Depois vira a próxima esquerda e o senhor vai dar de frente com o um semáforo. Depois desse semáforo, vira à direita de novo e segue reto. O senhor vai dar de frente com uma Avenida, então…

– Minha filha, eu não sou daqui… Preciso levar ela ao hospital! – disse o grisalho enquanto apontava para uma jovem mulata e grávida, chorando no banco do passageiro.

– O senhor tá querendo me dizer que essa moça tá tendo bebê agora?

-Sim!

– A bolsa já estourou?

– Já!

– Vamos fazer o seguinte: deixa eu entrar no carro que eu guio vocês até lá! – nem esperei a confirmação do senhor e, num impulso frenético, fui entrando no automóvel, que cheirava a pele negra e a cigarro. Como a mulata não tinha forças para afastar o banco para frente, sugeriu que eu me sentasse na frente, ao lado dela. Seu nome era Aline.

Fiquei observando suas feições. Fortes, mas ainda assim serenas. Ela me contou um pouco como funcionavam as contrações, dizendo que, de tão dolorosas, tornavam seu corpo todo amortecido. Apesar da dor e do choro, Aline também ria. Não só das piadas que o senhor contava para tentar distraí-la das contrações, mas por reconhecer certa comicidade naquela situação.

– Mas me diga, menina, você volta todos os dias a pé da escola? Haja pernas, não? – indagou o senhor.

– Volto sim. Eu gosto e nem acho o caminho tão cansativo… – pura balela. O que eu queria ter dito mesmo, aliás, feito, era ter me posto a chorar e começado a vomitar as dores do meu coraçãozinho partido; dizer que também estava grávida, mas era de amor e que meu coração estava sofrendo inúmeras contrações de paixão (continuo dizendo que naquela “época” era algo um pouco mais dramático do que conto agora). Contudo, contive as emoções e não dei margem pro assunto. Tínhamos chegado ao hospital. O senhor estacionou em frente a entrada. Ajudei Aline a se levantar do banco e recebi um abraço forte e barrigudo. Senti vontade de chorar e dessa vez não me contive. Desejei boa sorte.

Quando Aline chegou à recepção, acenei pela última vez e segui novamente o rumo  de casa. Fiquei pensando nela por um bom tempo e nas dores que a gravidez proporcionava em seu útero, tudo por um outro ser. Fiquei pensando que os apaixonados também sentiam fortes dores, não no útero, como as de Aline, mas que também eram por um outro ser. Nesse momento, reconheci duas verdades para mim mesma. A primeira é que, independente da profissão que eu escolhesse, gostaria de sentir a mesma emoção e privilégio que senti vivendo um pouco a história de Aline. A segunda é que o amor, assim como o de uma gestante, “só é bom se doer”.

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