Mês: abril 2013

Distração

Enquanto procurava o isqueiro perdido no meio da bolsa de pano, os lábios da moça seguravam a ponta do cigarro a movimentá-lo para cima e para baixo com a ajuda da língua. A primeira tragada pareceu descer ardida pelas entranhas da garganta, fazendo torcer as veias do pescoço. A primeira fumaça soltada fez com que seus olhos ardessem, despertando um piscar diferente e mais prolongado no olho esquerdo. Depois disso, o olhar penetrou em um ponto morto da cidade e assim ficou por alguns minutos.

Esperando as horas morrerem como urubu em cima da carniça, o porteiro de um dos prédios da Avenida 9 de Julho ficou por um bom tempo fitando o relógio digital, pregado na parede encardida e descascada de seu cubículo. O jornal, aberto na página de esportes, parecia um estímulo ao desinteresse. Ao lado, um copo de vidro esboçava marcas de um café tão amargo quanto o tédio. Olhou para trás, colocou um cd de música evangélica para tocar e a boca começou a se movimentar, cantando sem pronunciar qualquer ruído.

A primeira batalha do super-herói de apenas seis anos estava prestes a ser travada. Na sua frente, o vilão: um copo de leite com Nescau misturado a muitas natas. Os dedos finos e pequenos mergulharam no copo procurando retirar as tantas pintinhas brancas que não gostava, mas a tentativa foi falha. Quanto mais ágeis seus dedos se movimentavam, mais as natas pareciam correr de sua busca.

O chiado do rádio daquele automóvel transformava a voz do locutor em sonoridades mais roucas que a das cantoras de jazz. O volante se movimentava ao som dos mais variados ritmos, hora o das canções; hora dos barulhos da cidade. Todos os dias, torcia para o motorista entrar no carro de bom-humor para que não descontasse as angústias de toda uma vida em seu corpo duro e circular. No centro desse corpo: uma buzina de feições macias e voz estridente, que insistia em ecoar as frustrações do dono do automóvel.

O escritório parecia viver em eterno horário do “rush”. A correria, o barulho, a pressa, se davam num ritmo incessante nos prédios da Avenida Paulista. Na sala de xerox, a impressora, num gesto de rebeldia e negação àquele cotidiano inóspito, começa a rasgar e a cuspir a papelada que os homens de terno julgavam importante. Rebeldia que não dura muito tempo e é castigada severamente com tapas na lateral de seu corpo de acrílico.

Quando distraídos, somos mais humanos. A humanidade contagia os inanimados