COTIDIANO

Nessa categoria, o leitor terá contato com matérias abordando temas que nos assolam diariamente.

“Tudo em cima?”

– Você vai sair assim?

A pergunta soou constrangimento. Esse “assim” não era um “assim” qualquer: era sugestivo e parecia dar espaço apenas a uma resposta. Com a boca cheia de água e pasta de dente, tratei de prolongar o bochecho da escovação e, antes que pudesse cuspir os restos do meu almoço recém digerido, minha sogra continuou:

– Sabe o que é, bem? É que não pega bem moça de família sair assim na rua – e disse novamente aquele “assim”, apontando para os meus seios que, sem sutiã ou qualquer outro acessório de sustentação, se distribuíam caídos pelo decote do meu vestidinho frente-única.

Ainda com um pouco de água e pasta de dente no canto dos lábios, respondi com leve temor e desconcerto:

– Vou… Na verdade não tenho outra roupa, então…

– Pera que eu vou te emprestar um sutiã meu… – e foi até o quarto procurar um modelo que pudesse dar forma aos meus seios.

Enquanto isso, fiquei no banheiro sem saber ao certo como reagir, pensando em possibilidades de me livrar da situação sem qualquer constrangimento ou “saia-justa” (ou seria o caso de “sutiã justo”?). Antes que pudesse pensar em um jeito simples de me livrar do desembaraço, minha sogra reapareceu com um sutiã branco do estilo “nadador” que, ironicamente, tratou de afogar meus seios em duas placas de bojo que se uniam por um pequeno feixe de plástico bem no centro de cada um deles.

Enquanto fazia um pequeno ajuste nas alças, que ficaram um pouco largas devido a diferença de nossos corpos, minha sogra explicava com ar de sabedoria antiga:

– Seio grande geralmente é caído. Não tem problema você não usar sutiã aqui ou na sua casa, mas na rua as pessoas podem falar. Tem muita gente maldosa aí no mundo e, além disso, você pode acabar constrangendo até mesmo o Gabriel.

Durante o trajeto de volta pra casa, ainda um pouco constrangida, me lembrei que minha sogra não tinha sido a primeira a alertar sobre os meus seios. O primeiro a fazê-lo foi meu pai, que frequentemente me perguntava se eu tinha interesse em fazer cirurgia de redução para que eles não ficassem tão caídos. Num outro dia, estava caminhando pela rua e ouvi um menino gritar: “E aí, meio quilo de teta!” – respondi com meio quilo da minha mão no colarinho dele.

A primeira coisa que fiz quando cheguei foi tirar o sutiã que havia ganhado. Mal fechei a porta de casa e já fui me despindo em direção ao quarto como quem tirava uma criatura grudenta do próprio corpo. Parei diante de um espelho de corpo inteiro colocado ao lado de uma pequena cômoda e observei meus seios por um longo instante. Notei que as veias que os rodeavam estavam mais esverdeadas e saltadas do que de costume. Os segurei com as duas mãos como uma tentativa falha de adivinhar quanto eles pesariam. Os levantei até o centro do meu peito e os juntei imaginando como eles ficariam caso fossem mais erguidos.

Tentei encontrar motivos que dessem qualquer razão aos argumentos da minha sogra e de tantos outros que já tinham me alertado, mas percebi que tudo aquilo não se tratava de sutiãs ou dos meus seios caídos. Era sobre eu e como meu corpo poderia ser objeto de fetiche e, até mesmo, causador de um possível incômodo ou constrangimento para outras pessoas.

O moralismo que há tempos diz encarar o corpo como algo sagrado parece não fazer sentido em uma sociedade que cada vez mais retira a intimidade e a individualidade do corpo, pelo contrário: o coloca disponível para todos como objeto de especulação. Meu corpo não está para mim; está para os outros.

Seja nas ruas, de maneira física; ou na internet, de maneira virtual, o corpo está sempre à mostra. O corpo é cada vez mais um bem social, ironicamente numa época onde as pessoas potencializam suas relações por meio de aparatos tecnológicos que as distanciam fisicamente.

Além disso, toda essa discussão sobre seios caídos e sutiãs também me fez lembrar da obsessão que se tem em admirar tudo que está “em cima” – e não somente em termos de padrões de beleza femininos. Em um edifício empresarial, já parou pra pensar que os cargos mais importantes ficam na parte de cima? Ou expressões como: “Ele deu a volta por cima!”; “Você viu Fulana? Tá com tudo em cima!”; “Ele está por cima da carne sêca!”; “E aí, cara, tudo em cima?” – e por aí vai nosso complexo por tudo que está em cima.

Aline

É clichê, mas o terceiro colegial costuma ser um ano marcante e também decisivo na vida de todo jovem. Ainda mais se você é estudante de uma escola particular, onde o referencial de ensino é constatado pela quantidade de alunos aprovados nos vestibulares mais difíceis do país. Não faz muito tempo que eu deixei de usar uniforme, mas algumas lembranças me escapam da cabeça. No entanto, jamais esqueço que o terceiro colegial foi, para todos os meus amigos, um período de dúvidas.

Vi muitos colegas de classe sentindo culpa por não terem decidido – às vésperas do vestibular – qual carreira escolheriam (como se fosse possível escolher esse tipo de coisa como se escolhe um prato de comida em um menu de restaurante). Eu também sentia culpa. Culpa por não sentir culpa como meus amigos. Culpa por não me deixar envolver pela pressão do vestibular. Nessa “época” (sim “época”, afinal, mesmo não fazendo nem uma década que eu deixei de usar uniforme, olho para esse período com um distanciamento muito maior do que os anos possibilitaram), a escolha da profissão não foi o maior dos problemas. Não que eu não tivesse dúvidas em relação a isso, mas sabia que uma hora ou outra essa decisão viria. E veio. De modo mais natural que parto de mulher corajosa.

Era a última aula do horário. Massiva. Matemática. O professor era um homem de meia-idade que evidenciava sua amargura com piadas carregadas de um bom humor negro. Eu tinha terminado meu primeiro namoro fazia poucos dias. Desde então, virei alvo predileto das brincadeiras desse tal professor, que insistia em fazer piada dos meus choros incontidos meio as suas equações indecifráveis.

Quando o sinal da saída tocou, saí correndo da sala de aula para que ninguém visse as evidências do melodrama no meu rosto inchado. Naquele dia,  não quis voltar de ônibus, decidi ir para casa à pé.  Minha casa era longe, mas quanto mais minha cabeça se ocupava das lembranças do meu namorico apaixonado e recém-terminado (na “época” era algo bem mais dramático do que conto agora), mais involuntários se tornavam os movimentos das minhas pernas.

Estava prestes a atravessar uma rua ainda próxima do colégio quando fui freada por um carro desnorteado. O motorista era um senhor com um bronzeado de aspecto artificial, cabelos e barba grisalha que, com urgência, disse:

– Minha filha, onde fica o Hospital Universitário?

– O Hospital Universitário? É em frente a minha casa. Bem, vira à direita e segue reto. Depois vira a próxima esquerda e o senhor vai dar de frente com o um semáforo. Depois desse semáforo, vira à direita de novo e segue reto. O senhor vai dar de frente com uma Avenida, então…

– Minha filha, eu não sou daqui… Preciso levar ela ao hospital! – disse o grisalho enquanto apontava para uma jovem mulata e grávida, chorando no banco do passageiro.

– O senhor tá querendo me dizer que essa moça tá tendo bebê agora?

-Sim!

– A bolsa já estourou?

– Já!

– Vamos fazer o seguinte: deixa eu entrar no carro que eu guio vocês até lá! – nem esperei a confirmação do senhor e, num impulso frenético, fui entrando no automóvel, que cheirava a pele negra e a cigarro. Como a mulata não tinha forças para afastar o banco para frente, sugeriu que eu me sentasse na frente, ao lado dela. Seu nome era Aline.

Fiquei observando suas feições. Fortes, mas ainda assim serenas. Ela me contou um pouco como funcionavam as contrações, dizendo que, de tão dolorosas, tornavam seu corpo todo amortecido. Apesar da dor e do choro, Aline também ria. Não só das piadas que o senhor contava para tentar distraí-la das contrações, mas por reconhecer certa comicidade naquela situação.

– Mas me diga, menina, você volta todos os dias a pé da escola? Haja pernas, não? – indagou o senhor.

– Volto sim. Eu gosto e nem acho o caminho tão cansativo… – pura balela. O que eu queria ter dito mesmo, aliás, feito, era ter me posto a chorar e começado a vomitar as dores do meu coraçãozinho partido; dizer que também estava grávida, mas era de amor e que meu coração estava sofrendo inúmeras contrações de paixão (continuo dizendo que naquela “época” era algo um pouco mais dramático do que conto agora). Contudo, contive as emoções e não dei margem pro assunto. Tínhamos chegado ao hospital. O senhor estacionou em frente a entrada. Ajudei Aline a se levantar do banco e recebi um abraço forte e barrigudo. Senti vontade de chorar e dessa vez não me contive. Desejei boa sorte.

Quando Aline chegou à recepção, acenei pela última vez e segui novamente o rumo  de casa. Fiquei pensando nela por um bom tempo e nas dores que a gravidez proporcionava em seu útero, tudo por um outro ser. Fiquei pensando que os apaixonados também sentiam fortes dores, não no útero, como as de Aline, mas que também eram por um outro ser. Nesse momento, reconheci duas verdades para mim mesma. A primeira é que, independente da profissão que eu escolhesse, gostaria de sentir a mesma emoção e privilégio que senti vivendo um pouco a história de Aline. A segunda é que o amor, assim como o de uma gestante, “só é bom se doer”.

Distração

Enquanto procurava o isqueiro perdido no meio da bolsa de pano, os lábios da moça seguravam a ponta do cigarro a movimentá-lo para cima e para baixo com a ajuda da língua. A primeira tragada pareceu descer ardida pelas entranhas da garganta, fazendo torcer as veias do pescoço. A primeira fumaça soltada fez com que seus olhos ardessem, despertando um piscar diferente e mais prolongado no olho esquerdo. Depois disso, o olhar penetrou em um ponto morto da cidade e assim ficou por alguns minutos.

Esperando as horas morrerem como urubu em cima da carniça, o porteiro de um dos prédios da Avenida 9 de Julho ficou por um bom tempo fitando o relógio digital, pregado na parede encardida e descascada de seu cubículo. O jornal, aberto na página de esportes, parecia um estímulo ao desinteresse. Ao lado, um copo de vidro esboçava marcas de um café tão amargo quanto o tédio. Olhou para trás, colocou um cd de música evangélica para tocar e a boca começou a se movimentar, cantando sem pronunciar qualquer ruído.

A primeira batalha do super-herói de apenas seis anos estava prestes a ser travada. Na sua frente, o vilão: um copo de leite com Nescau misturado a muitas natas. Os dedos finos e pequenos mergulharam no copo procurando retirar as tantas pintinhas brancas que não gostava, mas a tentativa foi falha. Quanto mais ágeis seus dedos se movimentavam, mais as natas pareciam correr de sua busca.

O chiado do rádio daquele automóvel transformava a voz do locutor em sonoridades mais roucas que a das cantoras de jazz. O volante se movimentava ao som dos mais variados ritmos, hora o das canções; hora dos barulhos da cidade. Todos os dias, torcia para o motorista entrar no carro de bom-humor para que não descontasse as angústias de toda uma vida em seu corpo duro e circular. No centro desse corpo: uma buzina de feições macias e voz estridente, que insistia em ecoar as frustrações do dono do automóvel.

O escritório parecia viver em eterno horário do “rush”. A correria, o barulho, a pressa, se davam num ritmo incessante nos prédios da Avenida Paulista. Na sala de xerox, a impressora, num gesto de rebeldia e negação àquele cotidiano inóspito, começa a rasgar e a cuspir a papelada que os homens de terno julgavam importante. Rebeldia que não dura muito tempo e é castigada severamente com tapas na lateral de seu corpo de acrílico.

Quando distraídos, somos mais humanos. A humanidade contagia os inanimados

Nunca pensei que escreveria sobre a morte

Nunca pensei que escreveria sobre a morte. Quer dizer, como jornalista, é óbvio que frequentemente estaria relatando a perda de pessoas desconhecidas (de preferência de modo bem frio e sensacionalista como a mídia costuma fazer em sua faceta mais nauseante), descrevendo passo a passo dos últimos momentos de uma vida, resumidos em uma página fria de jornal que seria usada para embrulhar o peixe estragado de uma feira qualquer ou limpar algum traseiro, na falta de papel higiênico.

Ontem perdi um caro amigo. Christian. Estudou comigo no colegial e fez parte da melhor época da minha vida. Assassinato. Quando soube, a primeira reação que tive foi a revolta. Como poderia um simples bandido, desprovido de qualquer senso e amor pela vida, um Zé Ninguém tirar a vida de uma pessoa que mal começá-la? O Chris não tinha nem seus vinte anos, poxa. Depois veio a impotência. Comecei a observar as muitas reações das pessoas que o amavam, vi parte delas organizando até uma passeata contra a violência, mas a verdade é que nada disso pode trazê-lo de volta. É bobagem acreditar que algum senso de justiça preencha o vazio que um ente querido pode deixar.

Eu não sei como é a morte. Pra falar a verdade, nunca tinha pensado sobre ela. Via pessoas próximas morrerem ao meu redor, mas ninguém que fosse da minha idade. É estranho. Me senti da mesma forma quando tinha 12 anos. Eu era a única a não ter dado o primeiro beijo e ficava inquieta com o fato de minhas amigas já terem experimentado algo que eu nunca havia feito. Eu sei que, assim como o Chris, um dia eu terei meu encontro – e quem sabe até o primeiro beijo – com a morte. Mas ainda estou a pensar nela.

Acho que a morte é o início não só de uma vida que se findou, mas da vida que ficou. Porque, apesar de tudo, a morte de alguém marca o início de uma série de pensamentos, reflexões, voltas ao tempo necessárias para o amadurecimento de qualquer ser humano. A morte do Chris me fez voltar no tempo em que eu ainda usava uniforme, chorava escondida no banheiro, tinha aparelho nos dentes e era a garota mais altiva do universo. Me fez ter saudade de pessoas que não estão mais presentes, mas estão aí fora pulsando seus corações e arrancando sorrisos de outras pessoas. Mais do que nunca, estou louca para revê-las.

Ainda acredito que a vida das pessoas fala por elas mesmas. O legado é uma forma de vida e me parece ser quantificado na mesma proporção que a saudade. Eu estou com saudade do Chris. Estou com saudade dos velhos tempos, das antigas amizades. Da antiga Juliana (que ainda vive dentro de mim, altiva e escondida em algum lugar – talvez chorando em algum banheiro de escola).

“O que significa perda, se torna sinônimo de volta a si próprio”.
(Lou Salomé).

Na moral?

Novo programa de Pedro Bial foi comprometido devido a reflexões superficiais.

Antes de qualquer tipo de imprensa, os espaços públicos eram as esferas de debate. Cafés, bares, restaurantes reuniam grupos de intelectuais que trocavam ideias a partir de várias correntes de pensamento. Com o surgimento das várias mídias e a possibilidade de grande difusão da informação, o conhecimento ficou concentrado nas mãos de quem as possuía,  trazendo, dessa forma, certo comodismo aos cidadãos que antes se uniam dispostos a discutir e argumentar sobre assuntos gerais.

Poucos minutos antes de  “Na Moral” começar, estava dizendo ao meu pai que o assistiria, pois sentia falta de programas que fomentassem debates, reflexões, coisa não muito comum em emissoras privadas como a Rede Globo, em que o jornalismo perde sua função social para se tornar um mero produto industrial. Seria também uma nova chance ao apresentador Pedro Bial mostrar, de fato, a que veio. Apesar de sua seriedade ter sido comprometida devido sua participação nas edições do BBB, é inegável que o jornalista tem o dom da oratória e talvez seja um dos poucos que adote o cronismo como forma de narrativa televisiva. No entanto, tive minhas expectativas frustradas.

A primeira edição do programa contou com a presença do jornalista  Antônio Carlos Queiroz, do professor Luiz Felipe Pondé, da humorista global Maria Paula e do cantor Alexandre Pires para debater o tema “politicamente correto”, que tinha como premissa inicial levantar questões sobre modos de expressão popular que costumam gerar polêmica em seu uso diário. Afinal, é racismo chamar um negro de “crioulo” ou não? Infelizmente, questões como essa ficaram comprometidas devido a pouca argumentação dos convidados que, devido ao pouco espaço de tempo, não conseguiam concluir suas linhas de pensamento.

Uma matéria publicada hoje no Jornal do Brasil afirma que “a curta duração de exibição (pouco mais de 30 minutos) comprometerá qualquer tentativa de detalhamento do que está sendo colocado ‘na roda'”, concordo em partes. É verdade que, quanto menor o tempo de duração de uma reflexão, menor o seu aprofundamento, contudo, outros fatores tiveram influência: participação (ao meu ver, desnecessária) de convidados relatando suas histórias no palco – o que fez parecer os típicos programas da tarde, em que a polêmica em si tem mais espaço do que o próprio debate. E claro, não poderia esquecer da ilustre presença de homens fantasiados de gorilas e poposudas dançando um “hit” de Alexandre Pires no meio do auditório.

Ficou a dúvida sobre a proposta do programa, que pareceu se perder meio a necessidade das massas: o mero entretenimento. “Na Moral”, um programa que tinha tudo para ser um petisco aos neurônios, e por hora, apenas mais um petisco aos olhos.

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