VELHA INFÂNCIA

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À caminho da casa de repouso Cidade Vicentina, localizada na Rua do Retiro, um reduto tradicional de Jundiaí, o tempo aparece em duas facetas. A primeira retrata um tempo moderno, onde carros apressados passam por lojas de grife que apresentam as tão efêmeras quanto novas tendências da moda. A segunda retrata outro tempo, onde casas antigas com muros e portões baixos servem de pano de fundo para tranquilos passos e conversas despretensiosas entre os antigos vizinhos que ali habitam.

Para adentrar o complexo vicentino, é necessário cruzar os portões de ferro descascados de tinta marrom e se apresentar em uma sala-cubículo que fica logo na entrada do asilo. O cheiro de velhice parece impregnar todos os cantos – até mesmo os que não abrigam idosos. O caderno onde se assinam os nomes dos visitantes que por ali passam possui as bordas amareladas e tão consumidas pelo tempo quanto a maioria das vidas que ali residem. Tal qual a escrivaninha de madeira corroída, onde Amilton, um senhor que veste sempre camisa de linho branca e exala suor azedo misturado com cheiro de café amargo, lê seu jornal.

O asilo é dividido em dois pavilhões. Um para os homens; outro para as mulheres. Os moradores que podem pagar, vivem em pequenas casas de dois cômodos, construídas umas ao lado das outras. Diariamente o asilo fica aberto para receber visitas de voluntários e parentes dos moradores.

A primeira coisa que se avista ao entrar no complexo é o pavilhão dos homens. Do lado de fora, alguns idosos sentados em bancos de cimento que expressam sempre estranhamento e curiosidade ao se depararem com a chegada de visitantes.

Pedrinho, um senhor que veste sempre camiseta pólo abotoada até o pescoço e um boné vermelho – o que o faz parecer uma criança banguela de cabelos brancos – é um dos mais antigos moradores do asilo e demonstra uma cordialidade e interesse pelos que chegam como se fosse um mestre de cerimônia da ala masculina.

Do lado de dentro, o pavilhão é dividido em dois cômodos: o primeiro é uma pequena sala de TV com dois sofás encapados com corino colocados lado a lado. O silêncio é invasivo e acentuado pelos chiados da TV. O segundo cômodo abriga dezenas de camas de ferro enfileiradas e acompanhadas de pequenas cômodas portando fotografias, livros e outros pequenos pertences pessoais. A singularidade de cada um fica à cargo dos times de futebol, responsáveis por pequenas rixas e brincadeiras entre os companheiros de quarto.

No meio de tantas faces enrugadas trazendo marcas de expressão bem delineadas, uma figura chama a atenção. Artur, um senhor de no máximo sessenta anos que exala uma lucidez que destoa do ambiente. Ao contrário da maioria que se divide entre os que assistem televisão e os que dormem, Artur sempre está lendo – em grande parte das vezes, a revista VEJA [batizada por ele mesmo de revista “ZOIA”].

Além de ser o mais jovem do pavilhão, Artur também é um dos poucos idosos que vivem na Cidade Vicentina por escolha própria. “Ao longo do tempo fui sentindo que aquela casa onde eu morava não me cabia mais”, revela ao contar que queria “jamais” [acentua em seu timbre de voz] ser um incômodo para sua família. “A forma que eu encontrei de me manter saudável aqui foi não acreditar na minha insanidade. A insanidade dos outros contamina a gente”.

A falta de memória é para alguns um carma, mas para outros um privilégio. Privilégio, pois parte das histórias contadas estão relacionadas a maus-tratos familiares. É o caso de D. Carmen, moradora do pavilhão feminino há mais de dez anos após sofrer agressões por parte do sobrinho – episódio que deixou seqüelas em sua estrutura óssea, fazendo com que ela se locomova apenas com o auxílio de um andador.

Carmen é das mais geniosas. Carrega em suas mandíbulas chupadas e fundas uma amargura maior do que os olhos retratam. Sua família, que de início fazia visitas dominicais, nunca mais apareceu.

Em uma das tardes, Carmen tentou passar um protetor solar de 2003 no rosto. “D. Carmen, esse a senhora não pode passar no rosto. Está vendo? Está vencido”. Com ar irônico, me respondeu espontaneamente: “Então quer dizer que se o protetor solar passou do prazo, eu não posso mais usar? E com a gente? Passou do prazo também jogamos fora?”.

O sentimento de abandono, que invade principalmente as mulheres como Carmen, é uma das piores mazelas do asilo e responsável por ocasionar depressão e distúrbios emocionais.

No Brasil, a família ainda é uma instituição que depende do suporte do Estado para garantir aos idosos zelo e uma boa qualidade de vida. Apesar de algumas alternativas tentarem preservá-los ativos em sociedade, ainda assim ocorre uma espécie de marginalização para com esses grupos que,

Contudo, esses tipos de alternativa se tornam medidas segregadoras e pouco contribuem para que o idoso se sinta confortável e compreenda o envelhecimento como um processo natural a ser aceito e não um carma a ser combatido – como apresentam as revistas de moda e beleza em suas fórmulas “milagrosas” de combate ao envelhecimento.

Além disso, a perda das individualidades e autonomia é outro fator prejudicial. Um estudo feito pelo IBGE revela que 50% dos idosos em geral dependem de ajuda para realizar hábito corriqueiros. O fato de o asilo possuir  uma rotina massificadora (ainda que necessária); dividirem o mesmo espaço; terem horário regrado para se alimentar, tomar banho e dormir, acentua ainda mais a sensação dedependência e coíbe a expressão da personalidade de cada um.

Não era o caso de “Dodia”, que estava entre os moradores com melhor situação financeira e que viviam em casas construídas umas ao lado das outras. Dodia era um senhor bem apessoado que jamais revelara os olhos escondidos por detrás de suas lentes ray-ban escuras. Acompanhado de uma bengala de ferro, fazia questão de deixar a porta de sua pequena moradia sempre aberta para tentar amenizar o calor, que fazia seu pescoço ficar tão vermelho quanto sua testa molhada de suor.

Seu nome na verdade era Derson, porém, ao sofrer de um infarto no auge de sua carreira empresarial, ficou com a fala afetada, além do lado esquerdo do corpo paralisado. “Dodia” era a única palavra que conseguia pronunciar. Apesar de sua comunicação limitada, assuntos não faltavam para compôr os diálogos, expressados através de interjeições que variavam entre olhares, gemidos, sorrisos e grunhidos.

Seu quarto possuía um contraste curioso: móveis sofisticados dentro de paredes desbotadas e um pouco encardidas, que ganhavam certo charme com os quadros que ele mesmo pintava. O frigobar do lado direito da cama revelava um luxo fora do comum: ele era um dos poucos idosos a ter sua própria casa dentro do asilo.

Em nossos últimos encontros, ganhei de presente um quadro feito por ele mesmo: um bosque parisiense dotado de charme e romantismo pintado com pinceladas leves e carregadas de cores azuladas. Poucos dias após, Derson faleceu por conta de uma infecção nos rins.

O corredor onde morava é diferente do restante do pavilhão: há mais espaço para singularidade. Na janela de cada casinha há o nome de seus moradores escrito em uma pequena lousa de giz. Em frente a uma delas, uma dama parada em pé, vestida de vermelho e com os cabelos trançados. Na pequena lousa, o nome “Onilha”. “Meu nome é a coisa mais diferente da minha vida”, revela, não por acaso, em tom bem-humorado, já que a rotina regrada do restante do asilo incomoda e muitas vezes chega a ser sufocante.

Mulheres de Atenas

“Bem, alguém caiu?”. “Caiu não, senhora”. “Ah bom… Pensei que alguém tinha caído da cadeira de rodas. Então não foi nada, fui eu quem sonhei”, indagou D. Isabel, moradora do pavilhão feminino sem saber há quantos anos e incapaz de desenvolver um raciocínio retilíneo sobre o que diz. Ainda que aparente certa fragilidade, os traços de D. Isabel são muito fortes: sobrancelhas ralas, pele fina rasgada pelas veias de coloração azulada dando destaque às entradas da testa. Perto dos lábios, essa mesma pele faz parte de outro continente – parece terra sêcacraquelada. O que sobrou da femilidade aparece nas unhas pintadas com esmaltes descascados.

Ainda nas melhores fases de sua memória, ela contou, durante os passeios que fazia a passos lentos por todo o complexo, que morava na Avenida Paulista em São Paulo quando ainda era casada. Quando o marido morreu, foi levada pelos filhos ao asilo. Antes que pudesse continuar, ela parou a caminhada e apontou para uma construção não terminada em um pequeno terreno. “É ali que vão construir mais uma caixa de guardar velhos”.

Atualmente, D. Isabel faz seus passeios sentada em uma cadeira de rodas que leva o escrito “Ortobras” em uma das laterais. Diferente de antes, agora, pouco fala. A falta de memória faz dos seus diálogos algo confuso e cada vez mais difíceis de serem compreendidos. “Eu sonhei que estavas tão linda/ Numa festa de raro esplendor/ Seu vestido era branco/ Todo branco, meu amor”, era o que declamava a todo momento no meio de devaneios que pareciam não ter pé nem cabeça. “Não sei quem eu sou, onde estou, quando estou… A vida…A vida da gente. A gente vai ficando velha e esquecendo de tudo…Sonhei que tu estavas tão linda…”.

Mesmo exprimindo um ar melancólico, possui uma espécie de aceitação deprimente como um modo de convencer a si mesma de que ali seria o melhor lugar. “Ah, eu gosto daqui… Eu tenho que gostar… Uma das coisas que eu mais sinto saudade é de comer purê de batatas bem amassadinho”.

O pavilhão das mulheres de baixa renda possui uma energia diferente do pavilhão masculino. Há mais dores, lamentos e uma necessidade urgente por parte delas em dividir suas histórias com os visitantes. Essas mulheres – que são mães, órfãs de filho, viúvas, destilam suas dores a ouvidos desconhecidos. Algumas, em um ímpeto maior de se expressar, sufocam, com suas mãos gélidas e enrugadas, os pulsos desses visitantes como garantia de que eles ouvirão seus relatos até o fim.

As paredes do pavilhão possuem cores geladas. O cheiro forte de urina – vindo do banheiro e das fraldas geriátricas não-trocadas de muitas que não possuem mais controle de seu próprio organismo – entra pelas narinas de maneira tão intensa que se pode senti-lo no céu da boca e no centro da língua.

Na sala de TV: canal religioso em exibição, muitas reclamações. “Não aguento mais assistir o mesmo canal!”, resmunga D. Aurora, uma senhora sisuda que costuma usar mais de cinco anéis em um mesmo dedo. Mãe de oito ausências, foi a primeira a se retirar do cômodo.

Por possuir uma ideologia católica – evidenciada pelos vários retratos de figuras do catolicismo pendurados nas paredes -, a Cidade Vicentina não permite a exibição de canais se não os religiosos. No entanto, a proibição de vários hábitos não impede que muitas senhoras dêem um jeito de desfrutar de prazeres e hábitos que tinham antes de morarem no asilo. É o caso de D. Rosinha, uma senhora que usa um penteado de maria-chiquinha e possui ar de traquinagem sem nada precisar dizer.

Tendo como aliada uma das enfermeiras, D. Rosinha aproveita os passeios esporádicos que dá até uma pracinha próxima ao pavilhão para bebericar alguns goles de cerveja, escondida dentro de um saco de pão.

Entretanto, os moradores não são os únicos sujeitos a restrições. Na tentativa de fotografar uma senhora cega do olho direito, a primeira censura apareceu por parte de uma enfermeira de cabelos encaracolados e tingidos de loiro-dourado. “Aqui não é permitido fotografar”, diz em tom de alerta, exalando cheiro de cigarro.

Na segunda tentativa (dessa vez de fotografar Silvana, uma senhora com Mal de Parkinson que só consegue descanso em suas mãos quando cai no sono), fui mandada à diretoria para conversar com uma das freiras. “Dentro da Cidade Vicentina é proibido fotografar ou fazer qualquer registro. Os moradores daqui estão sob a tutela dos seus familiares, sob a nossa tutela e sob a tutela do Estado”.

A Cidade Vicentina é um micro-organismo que possui estrutura semelhante ao das cidades [organizadas com regras, diferenças sócio-econômicas e fervilhantes de histórias e vidas que são peças plurais de um único mosaico]. Diferente da atmosfera que se encontra ao redor – que está sempre em passos efêmeros – a Cidade Vicentina possui um tempo próprio: quando se entra lá, fica impossível determinar a passagem do tempo. A paisagem parece sempre imutável, como em uma fotografia. A movimentação maior fica por conta da morte, uma entidade que paradoxalmente está sempre renascendo naquele lugar.

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